segunda-feira, 23 de maio de 2011

Em busca do belo

Deitado em sua cama, um homem de mais ou menos seus trinta e cinco anos, folheia um álbum de fotografias. Olha sonhadoramente para cada uma das imagens que vão passando diante de seus olhos: os Alpes Suíços, as Cataratas do Niagara, , a Cordilheira dos Andes... De repente sorri e levanta-se abruptamente. Revira as gavetas do guarda-roupas e encontra sua máquina fotográfica polaroid. Em seguida, desce as escadas apressadamente. No andar inferior, a mulher pergunta aonde vai com tanta pressa. "Até parece que vai tirar o pai da forca!"  Ele responde, meio que resmungando, que vai dar uma volta e não demora. Abre o portão e se depara com a rua esburacada de sua casa. Está acostumado com aquela lama e aquela buraqueira toda, porém dessa vez tudo lhe parece monstruoso, uma agressividade a seus olhos; muito diferente do mundo das fotografias pelo qual havia simpatizado. apesar desse embate, não se detém; continua prosseguindo pela rua , sempre em linha reta, desviando-se apenas de eventuais bicicletas que com ele disputam espaço  na rua decadente. Uma miríade de feiuras vai encontrando em seu caminho: esgoto a céu aberto; capim  crescendo solto e encobrindo os meios-fios; moradias em condições precárias; gente triste olhando-o pelas janelas; crianças descalças correndo correndo de um lado para o outro, gritando, sapateando numa lama fétida de aparência sinistra. Ao comparar o mundo real com seu álbum de fotografias, mundos tão distintos, o homem tem um colapso nervoso. Gira seguidas vezes em torno de seu próprio eixo, como quem procura algo e desespera-se por nada encontrar. Tem ímpetos de gritar, e grita, e cai de joelhos e começa a chorar. O incidente intriga aos transeuntes, que de pouco em pouco vão se aglomerando ao redor do homem que julgam louco. Alguns riem ou fazem cara de pena, como se com isso quisessem dizer: "Coitado, tão novo e já lélé da cuca!" Outros batem fotografias, como se diante de algum acontecimento extraordinário ou de grande relevância. Logo a polícia chega, apitando estridentemente, dispejando a multidão. Resta apenas o homem, ajoelhado no chão. Levam-no preso. Na delegacia, fica detido numa cela minúscula e pouco iluminada. O café da manhã é ruim, em nada melhor que o almoço ou o pão endurecido e o café aguado que lhe dão como lanche da tarde; à noite, uma intragável sopa de sabe-se lá o que. A um canto da parede, ele senta e retira do bolso traseiro um retrato de seu álbum de fotografias. Devido ao ocorrido nas últimas ciscunstâncias, ela está desbotada, mas ainda assim é possível distinguir os contornos do monumento à Iracema, obscurecidos pelo pôr do solo. Faz que vai chorar, e chora abundantemente. Nesse exato instante, ouve-se passos do lado de fora e o carcereiro abre-lhe a porta da prisão. Ele está livre, mas leva alguns segundos para se dar conta. Ergue-se lentamente. as costas doem. O carcereiro devolve-lhe a câmera com a qual fora detido, pois não eram osa casos de suiídio na delegacia. Acompanhado pelo guarda, segue por um correodr até alcançar a saída. Do lado de fora a claridade é mais intensa, fere seus olhos. ele os protege com o antebraço esquerdo.
Pela rua íngreme da delegacia ele vai seguindo, a câmera em seu pescoço balançando para lá e para cá. Seus passos são cadenciados, medem cada milímetro do retorno para casa. Quase não nota a presença de um mendigo esfarrapado diante da porta de uma sórdida padaria; ele divide com seu cachorro um pedaço de sanduíche. O homeme se detém diante de cena por alguns instantes e bate uma fotografia. Em seguida, vasculha os bolsos e lhe atira duas duas moedinhas em sua caixa de esmolas. O mendigo não agradece a atitude, acostumado que está àquele gesto banal das pessoas que se querem fazer boazinhas e irem para o Céu. Como se não o notasse ali, continua a dividir o lanche com o cachorro. O homem prossegue sua caminhada ladeira abaixo, deixando para trás o mendigo e seu companheiro. Porém no seu rosto, agora, brilha um sorriso.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Só a Deus

Até bem pouco tempo, eu era um ser livre. Vivia por aí, de galho em galho, devorando frutas e cantando, quando vontade me dava. Com nada precisava me preocupar, porque Deus havia me presenteado o céu. Peregrino eu era: na primavera, aqui - no verão, acolá. Mas um dia a desgraça recaiu sobre mim. Fui enganado, covardemente enganado por uma cesta de frutas tentadoramente perigosa. Minha barriga rongava.  De pulinho em pulinho, esse meu jeito de caminhar, fui até lá, mas não pude me esbaldar, porque logo uma estranha floresta de gravetos acercou-se de mim. Gritei, gritei, gritei. Mas ninguém me ouviu. Me jogando contra aquelas árvores magrinhas, tentei derrubá-las, mas uma força maligna as mantinha de pé, fortes, inabaláveis, apesar da aparência frágil. Cheguei à exaustão, e com ela a noite. Como se o dia também estivesse cansado, ele se desfez em crepúsculo. Adormeci e sonhei que era capturado. Acordei. Não era sonho. Agora uma estranha criatura sem pêlos, que caminha sobre duas patas, me carregava. Tentei lhe perguntar para onde íamos. Não me respondeu; ou era mouco ou não entendia meu idioma.
Fui levado para um lugar ainda mais sinistro. Lá, outros companheiros também haviam sido capturados. Não pareciam abatidos - pelo contrário, até cantavam. Perguntei-lhes como podiam se submeter àquela situação.
 - Até que essa vida não é tão má, respondeu-me um sabiá de coleira. Aqui não nos falta comida e não precisamos nos preocupar em sermos devorados por algum predador sorrateiro qe venha nos surpreender na hora do sono.  Podemos ficar tranquilos.
Eu jamais ficaria tranquilo, estando preso naquela coisa esquisita..
Com o passar dos dias, comecei a sentir falta de minha antiga liberdade, tão drasticamente reduzida. Ficar saltando de um puleiro a outro não era o mesmo que que saltar de galho em galho, nem comer alpiste era tão bom quanto bicotear mangas madurinhas. Como em protesto, deixei de cantar; nunca mais ouviria-se a beleza de minha voz nas manhãs ensolaradas. Só a Deus eu cantaria. Só a Deus.

Barata cascuda

Quando revirava alguns livros, lá encontrei ela, tímida,  entocada entre Maria Helena Cardoso e Rubem Braga. Olhou para mim com seus olhos miúdos, estagnada pela surpresa de ter sido pega em flagrante. Não reagiu à minha presença intrusa. Balançando suas compridas antenas, apenas me observou. Para ela, eu era uma espécie tão curiosa quanto ela o era para mim. O fascínio era mútuo.
Como saído de um estado de transe, peguei um dos livros que estavam na estante, o que tinha quinhentas páginas e capa tão grossa que mais parecia  madeira. Continuei encarando a criatura asquerosa, dessa vez nem um pouco fascinado. Intenções nada amigáveis bailavam em minha cabeça. Ergui o livro para o alto, acima da cabeça, sem contudo tirar os olhos do animal. Seus olhos lustrosos me fitavam como se pedindo clemência. Mas fui irredutível.De repente, ficou tarde para voltar atrás.

Hóspede indesejado

Quando mamãe disse que receberíamos uma visita, eu não esperava que fosse a de um folgadão como o meu tio. Mais respeito, menino! Sim, mamãe, é o que ele é. O homem entrou em nossa casa sem cumprimentar ninguém, esparramou-se no sofá, tomou de mim o controle da televisão, mudou meu canal favorito para um programa nojento de piadas indecentes, tirou os sapatos, jogou os pés sobre a mesinha de centro e meteu a mão na minha pipoca; depois, para desfechar o cúmulo do absurdo, me mandou lhe pegar uma cerveja: "Depressa, fedelho, que eu estou morrendo de sede." Tente compreendê-lo, querido; seu tio é um homem do campo, ignora como as coisas na cidade funcionam.
Para mim, ele sabia das coisas muito bem - tão bem, que já estava se achando o rei do pedaço. O tempo todo me dava petelecos a troco de nada, e se eu ia reclamar, mamãe sempre ficava do lado do irmão: que, se ele me dava uns cascudos de vez em quando, é porque eu tinha feito por onde. Não aguento mais ele, mamãe: o homem fede, ronca, vive com a mão metida nas calças e, como se não bastasse, ainda solta puns tão fedidos que por onde ele passa as plantas murcham e os passarinhos adoecem. tenha paciência, querido. Ele não vai ficar aqui, morando com a gente, pelo resto da vida; já me garantiu que, quando arranjar um emprego, vai logo embora. E a senhora ainda acredita nisso? Quando esse homem arranjar um emprego, mamãe, eu já vou estar careca e gagá - morando bem longe daqui, graças a Deus.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Entrevista de emprego

Acordou-se mais cedo que de costume e vestiu sua melhor roupa - nada muito exagerado, precisava causar boa impressão, não espantar ou ferir a  vista de seu entrevistador com alguma coisa muito berrante. Teve receio de usar perfume,  talvez pudesse não agradar. Na dúvida, não usou nada: saiu de casa com o cheiro do próprio corpo depois de lavado, assim sentia-se mais seguro. Estava confiante de que o emprego seria seu.
Ao chegar à entrevista, deparou-se com uma fila infindável de concorrentes. Assustou-se. Não esperava encontrar tantos candidatos interessados numa vaga tão sem importância, e a agência de empregamento não o advertira do que teria a enfrentar. Tudo o que recebera fora uma carta em sua caixa de correspondências comunicando a proposta de emprego. "Levar prancheta", dizia uma nota de rodapé. Não tinha prancheta, teve que comprar uma.
Na sala de espera abarrotada, uma secretária peituda passou distribuindo uma folha a cada um dos presentes: o formulário a ser preenchido. Suou frio. Quase nunca se dava bem com formulários, não conseguia ser sincero e acabava preenchendo tudo com mentiras: escolaridade - ensino superior; curso - doutorado em letras. Quando a secretária aproximou-se, não olhou o papel, olhou seus peitos. Eram descomunais. Nunca tinha visto peitos tão grandes em toda a sua vida - evidente que eram artificiais. Naturais ou não, quem estava ligando para aquilo? Imaginou mil safadezas.
Diante daquele formulário, decidiu que seria honesto; preencheria tudo conforme a verdade, mesmo que ela não lhe fosse favorável. Quando devolveu o papel, sentia-se aliviado. A certeza de que arranjaria o emprego tornou-se cada vez mais viva.
Alguns instantes depois, começam a ser chamados os primeiros candidatos qualificados ( Francisco, Antônio, João), mas sua vez parecia nunca chegar. Estava prestes a levantar e gritar erguendo as mão para o alto: "Eu! Eu! Eu estou aqui! Por favor, me escolham!" A sala ia-se esvaziando e nada de seu nome ser convocado.Desesperou-se. Não havia conseguido.
Impaciente já, levantou-se e foi beber um pouco de água, o que não diminuiu sua tensão; mais um pouco e teria um colapso nervoso. Cansado de esperar, saiu às pressas do recinto abafado e ganhou a rua.
Instantes depois uma voz masculina ecoa da outra sala:
- Antônio Guilherme Araripe!
Mas ninguém responde.