segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O mundo tornou-se quadrado

Se há um ano atrás você tivesse me dito que o mundo é uma grande bola flutuante, eu teria acreditado cegamente. Mas não pense que o mesmo se daria hoje - não senhor! Hoje estou convicto de que o mundo é um quadrado. Mas não é culpa dele ser assim. Um dia, talvez, ele tenha sido mesmo redondo, porém suas curvas aos poucos foram perdendo o contorno, foram sendo comprimidas até se tornarem num sólido quadrado. Pode culpar a geração de nossos dias e seus computadores e seus pararelhos celulares e suas redes sociais abarrotadas de amigos que nunca chegarão a s conhecer de fato. Pode culpar a mídia dizendo o tempo todo o que é certo ou não fazer, como andar, como falar, o que comer para não acabar com aquelas gordurinhas que ninguém quer. Pode culpar as ditaduras da moda, que oprimem o modo peculiar que cada um tem de ser. Acredito que você não estará totalmente  enganado. O mundo, meu caro, tornou-se quadrado.

Domingos de pelada

Domingo, dia de sol e também de pelada. Mais uma vez os meninos se juntam no campinho para uma nova partida. Quem está de fora não entende de onde eles tiram tanta energia para correr atrás da bola de borracha cravejada de remendos. Há os vizinhos que reclamam da bagunça, mas nenhum é tão temido quanto seu Agenor. Homem careca e de cara azeda, já deixou bem claro que detesta os dias ensolarados  cheios de alegria e de crianças nas ruas. Por ele, todos os dias seriam dias de temporal e mesmo no interior do Ceará cairia uma nevasca, só  para não ter de aturar os domingos de pelada.
Correm boatos de que nem sempre seu Agenor foi essa criatura amarga e temida. Houve época em que até cedia seu terreiro para as partidas. Mas depois que seu único filho saiu de casa para brincar  com a molecada e nunca mais voltou, ele se tornara o que então conhecemos. A notícia de que o menino havia sido atropelado por um bêbado quando atravessava a rua para apanhar a bola o deixara em estado de choque. Seu menino tinha apenas nove anos, um anjo! Como Deus permitia que aquele tipo de desgraça acontecesse aos inocentes?
A partir de então seu Agenor tornou-se inimigo declarado do futebol e passou a detestar os domingos de pelada, mas não porque era uma pessoa má. Ouvir o som dos risos da molecada se divertindo fazia com que irremediavelmente se lembrasse do filho, e o que havia acontecido era o que mais tentava esquecer.   

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O atentado (parte II)

Havia matado um homem. Tudo o que tinha de fazer era ligar para a polícia, mas decidiu obedecer a seus impulsos. Enterrou o corpo em seu prórpio quintal e destruiu todas as provas que pudessem incriminá-lo mais tarde, quando houvesse uma investigação policial. Não foi fácil, o corpo pesava como chumbo; teve dificuldades para enrolá-lo num tapete e carregá-lo nos ombros. Enterrou-o a  dois metros abaixo do solo. Teve ímpetos de cavar um pouco mais, cavar sem parar, o suficiente para ocultar permanetemente seu crime. Porém deteve-se quando sua picareta perfurou o lençol freático, fazendo a parte inferior do buraco encharcar-se de água. Aquilo bastaria. A água ajudaria o corpo a se decompor mais rapidamente. Jogou-o ali sem nenhuma cerimônia (o homem era um completo estranho que invadira sua casa duarante a noite, numa tentativa de assalto; caso não houvesse atirado nele, era sua família que agora poderia estar morta, enterrada num buraco mais digno. Mas era provável que o delegado de polícia não fosse compreender sua atitude. "A arma do homem estava sem balas!" Claro que estava, mas como ele iria saber? Agira instintivamanete, como faria qualquer animal acuado diante de um predador.). Depois voltou ao quarto  e tratou de esconder a arma do crime (a sua arma). O chão ensaguentado ele lavou com alvejante repetidas vezes. A filha perguntou se já não bastava. Não. Era preciso esfregar, esfregar, esfregar. Pediu que a menina ajudassse. A princípio, ela recusou; não queria colocar as mão onde o morto havia caído (tinha pavor a esse tipo de coisa). Mas o pai foi incisivo, ao menos seu berro foi forte o bastante para dobrar a menina. A mãe apareceu logo em seguida, espantada com o urro animalesco; acreditou que a casa houvesse novamente sido invadida; esperou encontrar outra vez o bandido encapusado, apontando uma arma para a cabeça de sua filha e berrando ordens. Mas tudo o que encontrou, ao entrar na cena do crime, fora o marido e a menina empenhados em esfregar o chão. Se que pedissem, ela se equipou de um esfregão e tomou parte do serviço. Caso a polícia descobrisse tudo, ela tembém seria presa, como cúmpluce. Mas nada seria descoberto, nada! O corpo havia sido enterrado para sempre.
Semanas se passaram sem que a polícia fosse bater em sua porta. Nesse curto período, a pequemna família tentou gozar de uma vida normal. Tentou, mas tudo foi inútil. Vez ou outra o episódio voltava num pesadelo ou na mesa de jantar.
- Papai, você acha que aquele moço está no céu?, perguntava a menina quando tudo parecia estar esquecido.
- Não, claro que não , querida, o pai respondia, tentando ser esclarecedor. No céu não há vagas para homens maus.
- Então o senhor não vai para o céu!
O home esngasgava.
- Por que diz isso?
- O senhor matou um homem. Gente que mata não vai pro céu. Foi o que a tia da escola disse.
- E ela está certa, mas eu acredito que Deus não seria tão injusto a ponto de não abrir algumas exceções em casos particulares
.As palavras da filha tiraram-lhe o sono naquela noite. Não queria que a menina pensasse aqueles absurdos a seu respeito. Porém era tarde, tarde para voltar atrás e evitar tudo, tarde demais para se arrepender. Havia matado um homem... e ia para o inferno por causa disso.
Apenas uma coisa poderia lhe redimir; precisava da rum jeito naquilo. Levantou-se no meio da noite, decidido a resolver tudo. A mulher perguntou para onde estava indo. Disse apenas que precisava de ar, seus pensamentos não o deixavam em paz. Em nenhum momento ela suspeitou do que seu marido pretendia, em momento algum foi capaz de imaginar no que aquela inocente escapada resultaria.
De repente, um único estampido estoura no meio da noite. A mulher chora, angustiada e aflita. Seu marido está morto.
  

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O atentado (parte I)

A madrugada ia solta quando Bilu começou a latir. Havia notado o vulto de um estranho que tentou fugir , mas não conseguiu escapar à percepção do cachorro. Em seguida, os cômodos da casa se encheram de luz e um homem vestido em um roupão de dormir apareceu na vranda. Pouco depois, uma mulher e uma garotinha. O homem perguntou: "Quem está aí?"Parecia firme, mas a verdade era que estava com medo. Qualquer um estaria, se desconfiasse que sua casa estava prestes a ser saqueada.
- Para com isso, Bilu!, gritou a menina para a casinha de cachorro, mas logo depois confessou, com voz de choro:  "Pai, estou com medo!"
- Não deve ser nada, querida. Vamos entrar.
E entram, mas as luzes permaneceram acesas. O bandido desconfiou que a  essa altura o homem estivesse discando o número da polícia. Talvez fosse melhor esperar a noite seguinte.
Mas a oportunidade perfeita surgiu antes do que ele esperva. Minutos depois, a luzes voltaram a ser apagadas e a casa voltou à escuridão inicial. Estva na hora,.
Com habilidade felina, ele foi se esgueirando por entre as árvores do quintal para  escapar à visão do cachorro, que ainda assim rosnava a cada movimento seu. Tornou-se cada vez mais cauteloso, até alcançar a porta dos fundos. Entrou. Deu de cara com a cozinha. Nada de grande valor. Apanhou uma faca e ivadiu o outro cômodo, pronto para qualquerimpreviso.
A sala. Esapaçosa e cheia de coisas, como ele esperava. Sem produzir o menor ruído, foi recolhendo o que podia com as  mãos e depositando na bolsa preta que havia trazido: louça fina, molduras caras, estatuetas de porcelana... Não ficou surpreso com o luxo de tudo aquilo. Sabia a quem estava assaltano. Passara semanas planejando meticulosamente o que faria, como e quando. O único imprevisto fora o cachorro, não estva ali há uma semana. Mas isso agora já não lhe constituía nenhum risco.
Passou para o andar superior. Sabia que o ricaço guardadava dinheio num cofre secreto em algum lugar do próprio quarto. Teria que usar-se de violência, se quisesse ter sucesso, pois muito provavelmente iria enfrentar resistência ao se deparar com o dono da casa. Puxou um revólver da cintura: calibre 38, sem balas. Não queria ferir ninguém, ainda mais naquela casa. A arma era só para intimidar.
Entrou no quarto. Ele estava vazio. Procurou no banheiro contíguo: ninguém; teria estranhado menos se houvesse encontrdo apenas sua mulher. Suou frio. Haviam armado uma para ele.
Procurou manter a calma. Estava armado, não precisva ter medo. Sua arma estava descaregada, era verdade, mas só ele sabia disso. Carregado ou não, sob o cano de um revólver ninguém seia louco de se meter a besta.
Saiu do quarto e começou a andar lentamente pelo corredor que dava acesso aos outros quartos. Parou diante de uma porta e etentou a maçaneta: trancada; provavelmente um quarto de hóspedes. Seguiu tateando no meio da escuridão e encontrou mais outras duas portas; também constatou o mesmo. A quarta porta, porém, estava meio centímetro aberta. Um pequeno filete luminoso escapava dessa abertura mínima. Ele aproximou-se e espionou.
O quarto era de menina. Sobre a cama, uma garotinha  - e se pai ao lado, contando-lhe historinhas, enquanto a mãe, do outro lado, afagava-lhe os cabelos.
"... E o Lobo vociferou para os Três Porquinhos: se vocês não abrirem esta porta eu vou soprar, e soprar, e soprar..."
De epente, um estrondo. Diante de um bandido encapusado e de arma em punho, a pequena família se encolhe, como os Três Porquinhos diante do Lobo.
 - Você, levanta aí!, ordenou o bandido para o homem de roupão. Ele obedece.
 - Cadê a grana?, o bandido pergunta, apontando-lhe a arma para a cabeça.
- Não sei do que você está flando!, responde o homem do roupão, e logo recebe uma coronhada na cabeça.
A menina solta um gritinho estridente, logo sufocado pelo gesto abrupto da mãe de lhe tapar a boca.
- Eu não sei de nada!
O bandido dirige-se até a menina. Apontando a rama para sua cabeça, solta um berro que faz lembrar um gorila:
- Não me faça de idiota ou eu estouro os miolos dela! Cadê a grana?
Vendo sua filha naquela situação, a mãe perde o controle e atira-se contra o bandido. Leva uma bofetada no rosto e volta para o canto, resignada.   
- Vam'bora, playboy. O que vai ser, prefere ver tua família morta?
Trêmulo, o homem de roupão limpa o sangue que banhva sua testa e levanta-se do chão.
- Está bem, venha comigo, mas deixe que minha mulher e minha filha fiquem, sugeriu ele.
O bandido ri.
- E tua acha que eu sou otário? Tá querendo me passar a perna, é? Vam'bora todo mundo de uma vez, vam'bora!
A mulher ainda estava  se ecuperando do tapa que recebera. Não consegue se levantar a  tempo.
 - Vam'bora sua vadia!
Ela recebe outro bofetão. Esse arranca-lhe um filete de sangue do canto esquerdo da boca. Trôpega, acompanha o mrido.
No outro quarto, o homem de roupão retira um quadro da parede, revelando a porta de um cofre sobre a cabeceira da cama.
Debaixo da máscara o bandido estica os lábios,  forçando um sorriso  sarcático.
- Cês grã-fino são tão previsíveis! Ele havia assistido a vários filmes onde o ricaço escondia pequenas fortunas no interior de um cofre secreto, ocultado por um quadro sobre a cabeceira.
De costas para o bandido, o homem de  roupão abre o cofre. Demora-se algum tempo de pé, o que faz o abandido suspeitar. Quando volta-se, saca da pistola que havia retirdo do esconderijo e despeja uma salva de balas contra o peito do homem que invadira sua casa. Não pensa, apenas vai apertando o gatilho até que não haja mais nada e tudo fique em silêncio, a não ser pelo barulhino insistente da agulha martelando: tec, tec, tec. Sente alívio e prazer em ver o bandido estirdo no chão, afogado no prórpio sangue.

***

Mãe e filha assistem à cena perplexas, os olhos vidrados na arma que o marido conserva em punho. Ao dar-se conta disso, ele abandona o pesado objeto metálico sobre a cama e vai até o bandido, toma-lhe a 38 da mão e descobre o tambor vazio. Tudo o que então consegue dizer resume-se a um quase inaldível murmúrio:
- Snto Deus!...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Museus e fantasmas

Toda vez  que penso no assunto, não há como escapar a essa relação que os museus têm com os fantasmas, talvez porque todos os museus do mundo sejam poeirentos e cheios de coisas velhas , atrativo irresistível para todos os tipos de fantasmas.
Quando eu era criança, poucas vezes fui a um museu. Meus pais não tinham dinheiro para ficar gastando com essas coisas, e os parcos recursos que angariavam por meio de árduo trabalho mal bastavam para o arroz e o feijão. Mas eu sabia como eram os museus pelo o que via na tv; filmes que tratavam do assunto era o que não faltavam.
De uma coisa eu tinha certeza: museus nunca ficavam abertos até tarde da noite, justamente por causa dos fantasmas. Para não assombrar os visitantes, as portas são fechadas antes mesmo que dê meia-niote. De meia-noite em diante, o museu é dos fantasmas.
Eles ficam zanzando a noite toda, entre estátuas e vasos antigos. As múmias egípcias saem de seus sarcófagos e passeiam como gente viva; algumas ainda conversam umas com as outras, talvez contando a fofoca do dia. O esqueleto de um tiranossauro rex corre atrás de uma pequena galinha pré-histórica, provocando grande espalhafato.
Horas depois ouve-se um apito de navio, e o velho Titanic surge no meio do museu. Jack e Rose estão na proa, abraçados, como no filme; não imaginam que seu barquinho pode afundar como se fosse feito de papel. O mesmo não se daria com o Holandês Voador, pois, como o próprio nome diz, um barco voador não afunda.
Ali está Dom Pedro, proclamando a Independência, enquanto naquele outro canto uma multidão de judeus carecas caminham melancólicamente para o holocausto. Eles sabem que vão morrer? Já estão mortos!
Antes que o dia amanheça, todo esse mundo fantasmagórico aos poucos vai-se apagando, como a neblina é espantada pelos raios de sol. O grande museu vai ficando novamente vazio e tudo volta a fazer sentido.

Caixinha de surpresas

Mal ela entrou na sala e todo mundo avançou em cima dela, puxando-lhe a manga da camisa, os cabelos; apertando-lhe as bochechas. Queriam saber o que trazia naquela caixa. Começaram a fazer suposições.
- Eu acho que é uma barra de chocolate, sugeriu um.
 - Claro que não, seu burro, disse outro, fazendo mofa. Olha só o tamainho dessa caixinha. Onde já se viu uma barra de chocolate caber aí dentro?
 - Diz o que é, então, já que você é tão sabido.
- Eu acho que é uma trufa de chocolate.
Todos ficaram com água na boca, diante da possibilidade de haver uma coisa tão gostosa dentro daquela caixinha. Mas ainda podiam caber mais coisas lá.
 - Talvez seja um caramelo.
 - Ou uma bala de açúcar.
- Ou ainda um punhado de jujubas!
Diante dessa última possibilidade, todo mundo vibrou: êêêêê!!! 
A professora pediu ordem. Resignadas, as crianças obedeceram e, uma a uma, foram sentando nas carteiras. Ficaram de cabeça baixa, certas de que ela nunca revelaria o segredo da caixinha de surpresas.
Então ela sorriu e tirou de lá de dentro uma  florzinha amarela, tão pequena quanto a cabeça de um alfinete, e a colocou num vaso sobre sua mesa de professora. 

A pergunta irrespondível

Agnaldo lia jornal esparramado na poltrona da sala, charutão cubano na boca. O filho chega fazendo estardalhaço e perturba sua paz. Quer saber para que servem os cavalos-marinhos, se a gente não pode montar neles. Agnaldo não sabe o que responder, emtão manda o menino ir perguntar à mãe; ela sabia muito mais coisas que ele.
Mas logo a mãe também se viu em apuros, não sabia o que responder ao menino. Com o jeito delicado que só as mães tem de ser, mandou que o menino deixassse aquilo e fosse brincar lá fora.
Ele foi, mas ainda com a dúvida matutando em sua caixola. Para que servem os cavalos-marinhos? Talvez essa fosse mais uma daquelas questões irrespondíveis: "Quem é Deus?", ou "De onde vieram as crianças?".

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Em Fortaleza é sempre assim

São 15h e 35min de uma tarde calourenta de quarta-feira. Em Fortaleza é sempre assim. Se o Sol não está fritando o asfalto, as chuvas estão alagando tudo, arrastando casas, detritos e gente. Hoje faz calor, diria que por volta de uns 30°C, com umidade relativa do ar quase nula. Da janela do me quarto posso ver a favela expondo seus barracões ao Sol. Nos terreiros, uma confusão de varais com roupas para secar. Crianças banham-se com mangueiras d'água. Alguém distante reclama: a água não está de graça. E não está mesmo! Ainda ontem quase tive um ataque cardíaco ao reber minha conta mensal, se não fosse demasiado jovem para esses tipos de ataques. Já procurei saber o motivo desse aumento repentino. Dizem que é para fazer melhorias no sistema de distribuição. Só esqueceram de me dizer onde estão acontecendo essas melhorias, porque inúmeras vezes meu chuveiro me deixou na mão no meio de um banho.
Em Fortaleza é sempre assim. As coisas nunca estão acontecendo de fato. Você sabe que uma estrada está sendo pavimentada ou que um hospital está sendo reformado quando alguém lhe conta, mas a verdade é que tudo não passa de boatos. O que vemos de fato são os escombros de um hospital caindo aos pedaços e buracos misteriosos que vão surgindo pelas estradas. Já me perguntei se esses buracos levam a algum outro mundo - algum Reino Encantado, talvez, onde nada disso exista. Mas não. Esses buracos são daqui mesmo.
Esta é uma cidade de aparências. Não importa se nesse exato momento famílias estejam desabrigadas, torrando ao Sol como o churrasco da miséria, ou se as chuvas do mês anterior levaram abaixo centenas de outros casebres humildes como os que vejo da minha janela. O que importa mesmo é que  a TV, os cartazes e os outdoors  estejam sempre anunciando uma  "Fortaleza bela", uma Fortaleza quimérica onde nunca viveremos.

O silêncio e as palavras

Para Carol da Silva, grande amiga, grande pessoa

Uma das coisas mais belas que já me disseram não veio de um filósofo ou de algum pensador que fez história. As palavras que tanto me tocaram o coração e que levarei comigo pelo resto da vida vieram de uma garota. Ela tinha espinhas na cara e ainda não alcançara a maioridade, mas falava como se houvesse vivido milhares de vidas. Não achava que isso fosse possível, pois na época não estava convicto da capacidade que nossa alma tem de reencarnar muitas e muitas vezes, até encontrar seu caminho. Mas hoje eu diria que, em um passado remoto, aquela garota vivera no corpo de algum sábio pensador grego. Nunca parei para reparar nisso, mas ela seria engraçada, usando roupas antigas e barbas e cabelos compridos, sem falar no fato de ser um homem. Mas na Grécia ela não teria tantaa vantagens como mulher. As mulheres, assim como as crianças e os esravos, eram banidos do exclusivo círculo da elite aristocrática. Levando isso para os dias atuais, seria como um trabalhador assalariado querendo levar sua família para um passeio num shopping center.
Nossa amizade aconteceu fácil. Bastou uma simples troca de olhares e um curto período de diálogo para que nos sentíssemos compatíveis um ao outro. Ela viva dizendo coisas como: "Se avida que a gente vive não é nem de longe a que desejávamos, devemos viver ainda assim, mas lutando para torná-la cada vez melhor." Ou ainda: "Lutar pelos nossos sonho é a batalha mais nobre da vida". Coisas desse tipo me deixavam particularmente encantado. Às vezes me achava um bobo, quando comparado a ela. Mas logo ela me fazia sentir especial, com mais palavras que só ela sabia falar. Sentia-me inútil quando todos os assuntos que tínhamos para tratar se esgotavam no decorrer de uma semana. Então ela sorria, gentil, e tocava meu ombro com mão de nuvem. A maneira como então me olhava deixava-me constrangido. Ao notar minha reação, procurava concentrar-se num outro ponto qualquer, que não fosse eu. Depois dirigia-se a mim novamente e dizia: "O silêncio não significa que não tenhamos nada a dizer um ao outro. Talvez a gente tenha tanta coisa a dizer que não precisamos falar nada."

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Num quarto escuro

Já passa da meia-noite - e eu aqui, mergulhado no tédio. Procuro algo para me distrair, em vão. As paredes que me cercam também me comprimem e me sufocam. Não sou claustrofóbico, mas tenho medo de morrer feito um rato que não encontrou saída.
Então levanto, fico girando em círculos - girando, girando, girando - até que me sinto enjoado. Entrego os pontos e finalmente me atiro à cama, mesmo insone. A escuridão me enlove maternalmente. A cegueira também é um modo de ver.
Bem ao longe os galos cantam. Eles nunca esperam o dia amanhecer de fato. Antes que os primeiros raios de sol se infiltrem pelas brechas do meu telhado, eles cantam. Talvez tenham sexto-sentido ou  talvez uma premonição das coisas que vão acontecer. Eu aqui, mergulhado no breu, jamais compreenderei os mistérios que regem o Universo.

O jornaleiro

Eu ainda não havia tomado o café da manhã quando me bateram à porta; na verdade, sequer havia levantado da cama - o que não era para menos: quem, no nome de nosso Senhor Jesus Cristo, seria tão inescrupuloso a ponto de incomodar um pacato cidadão àquela hora do dia? Na verdade,eu não fazia ideia de que horas eram;  não sou do tipo que mantém um relógio de estimação ao lado da cabeceira - mas isso não muda o fato de que era cedo, demasiado cedo para se incomodar alguém. Continuei na cama e o sujeito lá fora não insistiu.
Menos mal; assim poupava-se ele  mesmo de perder seu tempo - o tempo que é tão precioso e que jamais pode ser recuperado. Gastá-lo negligentemente é a pior tolice que um ser  humano pode cometer.
Talvez o estranho tenha se dado conta disso.Num primeiro momento, quem sabe, talvez tenha ficado chateado, mas logo ao virar as costas sorriu para o barzinho do outro  lado da rua. O que quer que tenha vindo fazer à minha porta, esqueceu-o quando a deixou para trás, junto com o jornal do dia.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

De volta à vida

Tudo começou a partir de uma coceirinha gostosa no meu pé esquerdo. Achando que fosse coisa que passaria logo, não dei tanta importância ao caso. Toquei a vida como quem tocasse carro de bois.
Devo admitir que , depois de alguns dias, estava começando agostar daquela coceirinha, afinal tinha algo a que dirigir meus pensamentos. Todas as noites, ao término de uma exaustiva jornada de trabalho, atirava-me no sofá e arrancava os sapatos para aliviar a comichão que fazia festa entre meus dedos.
Numa dessas ocasiões, porém, me vi surpreendido. A pequena vermelhidão entre meus dedos havia tomado proporções assustadoras, invadindo territórios vizinhos. Como se não bastasse, também deu a latejar. Semanas depois, sequer estava conseguindo calçar um sapato.
Fui ao médico. Ele disse, com aquele ar de sabichão que só os médicos sabem fazer, que o caso era grave, muito grave.
- Vou ter que me submeter a uma cirurgia? perguntei, já prevendo o pior.
- Não, ele respondeu assim mesmo, fria e secamente.
 -Meus dedos serão amputados?
- Também não.
- Que diabos vai me acontecer, então?
Ele me receitou uma pomada, uma reles pomada de farmácia, adquirida pela quantia exata de R$ 1,20. Fiquei uma fera. O que aquele doutorzinho de quinta estava pensando? Eu não estava sendo dramático, juro por Deus!
Fui a uma mãe de santo e ela me receitou umas mandingas infalíveis. Ora, ao menos alguém me levava à sério.
A mandinga não funcionou, e acho até que exerceu um efeito inverso, pois logo em seguida me atacou uma febre inexplicável e umas dores nas tripas. Talvez o santo não tenha ido com a minha cara, o que é naturalmente justo, pois não é de agora que ando fazendo o sinal-da-cruz toda vez que encontro um despacho numa praia.
Fui à igreja. Disseram que eu estava com o demônio e que Deus iria expulsá-lo de mim. Não sei se expulsou, ou se o demônio realmente esteve em mim; o fato é que as orações de nada adiantaram.
Voltei ao hospital, na esperança de que daquela vez ficaria dias internado. Mas que nada! O mesmo médico me receitou uns xaropes e me mandou de volta pra casa.
Dias se passaram, e nada de melhoras. Já não mais acreditava em remédios ou milagres. Havia feito um trato com a morte: que ela me levasse de uma vez, e eu não me importava com o lugar para onde iria.
Porém Deus, que é sempre misericordioso, dirigiu seu olhar a esta pobre e ignóbel criatura e enviou um de seus anjos a meu leito de morte.
- Miguel? perguntei, e a mais bela de todas as vozes respondeu: "Sim!" Senti o ar estremecer.
Tudo ficou muito claro, como se o próprio astro-Rei houvesse invadido meu quarto. Uma súbita alegria apoderou-se de meu peito, então sorri. Estava de volta à vida. 
 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Disco voador

O menino aponta para o alto:
- Olha pai, um disco voador!
O pai está distraído com outra coisa qualquer, mas ainda assim responde:
- Discos voadores não existem, meu filho.
- Então  que é aquilo?
- Talvez sua imaginação, fazendo você de bobo.
Ele havia lido em algum lugar que com crianças as coisas aconteciam daquele jeito. As causas geralmente eram explicadas pelo uso contínuo de vídeos-games e horas desperdiçadas diante da televisão.
A televisão está sempre enchendo a cabeça das crianças com bobagens, quinquilharias intelectuais que vão se acumulando na massa encefálica e contribuindo para que os adolescentes tornem-se probelmáticos e que no futuro tenhamos uma multidão de homens-zumbis vagando pelas ruas, como aconteceu em A Noite dos Mortos-Vivos.
O menino insisstiu tanto com o pai que este acabou perdendo a paciência e mandou que o filho fosse encher o saco de outro em outro lugar - de preferência, bem distante, de onde ele não pudesse ouvir sua voz. Ao se ver livre do guri, o pai voltou a seus afazeres.
E de repente o céu enegreceu, como acontece em filmes apocalípticos. O menino gritava histéricamente de algum distante lugar.:
- Um disco voador, pai! Eu falei que era um disco voador!

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A placa amarela

"Cuidado: área de risco!" - dizia a placa amarela, já meio esburacada. Olhei ao redor, apreensivo, esperando que alguma tragédia se desse, caso eu desobedecesse àquele aviso. Podia ser que, ao me arriscar nessa aventura, um piano de cauda misteriosamente despencasse do alto sobre minha cabeça, ou um vagão de trem descarrilhado passasse por cima de mim. Ao ignorar um aviso tão claro, sem saber eu podia estar invadindo algum território inimigo, o que imediatamente desencadearia uma guerra; no meio do fogo cruzado não haveria como escapar à uma bala perdida, que logo seria bala achada em meu peito por algum legista. Sou um cidadão de bem, esse negócio de guerra não é comigo; o que meus filhos pensariam de mim, caso fosse eu o  responsável por uma catástrofe? Mil anos no Purgatório não bastariam para amenizar minha culpa. Deus mesmo não me privilegiaria com pena tão branda. Um homem que faz guerra merece mesmo é o  Inferno - nada de meios-termos.
Nossa vida tem muito dessas placas espalhadas em cada esquina. Seríamos um pouco mais felizes se obedecêssemos a elas com mais regularidade. Mas achamos que uma placa é só uma placa e que é perda de tempo obedecê-la; o importsnte é avançar, sempre, mesmo que mais a frente um abismo nos esteja esperando com sua bocarra faminta.
Diante daquela placa amarela eu hesitei. Não sei o que mais me fez tomar uma atitude assim, se a cor amarela que geralmente anuncia algum alerta, ou se as próprias palavras: "Cuidado: área de risco!" com aquele ponto de exclamação no final. Nunca soube o que me aconteceria, caso ignorasse aqueele aviso -  e jamais saberei. Tomei outro caminho e rumei para casa.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Complexo de estudante

Todo final de ano é um deus-nos-acuda para o estudante. E corre-se atrás do tempo perdido, numa tentativa louca de escapar à reprovação. Poucos são os que conseguem tamanha proeza, e esses devem ser laureados com medalhas e troféus, além de terem  um busto de bronze expostos com seus nomes em alguma praça pública importante. Para os que lastimavelmente acabam dando com os burros n'água, entretanto, resta o grande desafio de ocultar dos pais suas notas hemorrágicas, afinal não existem muios lugares onde se possa esconder um boletim escolar. Além do mais, as mães parecem ter um faro felino para esse tipo de maracutaia - ou sexto-sentido, chamem como quiser; o fato é que dá no mesmo. Muito menos espinhoso é recorrer ao pai; os homens se entendem melhor. Você pode dar uma desculpa qualquer, alegar que, entre farra e mulheres, não encontrou tempo para meter a cara nos livros, e o pai ficará orgulhoso: seu filho  é um homem! - um homem reprovado em matemática, é verdade, mas acima de tudo um homem. O fato então deixa de ser tão grave. "Da sua mãe cuido eu, meu filho. Da sua mãe cuido eu". Essas coisas de escola são sempre assim. A gente nunca sabe o que fazer com um monte de números pares, números primos, números tios e números cunhados. Mas livrar-se de certas situações pode ser tão simples quanto 1+1.