segunda-feira, 23 de maio de 2011

Em busca do belo

Deitado em sua cama, um homem de mais ou menos seus trinta e cinco anos, folheia um álbum de fotografias. Olha sonhadoramente para cada uma das imagens que vão passando diante de seus olhos: os Alpes Suíços, as Cataratas do Niagara, , a Cordilheira dos Andes... De repente sorri e levanta-se abruptamente. Revira as gavetas do guarda-roupas e encontra sua máquina fotográfica polaroid. Em seguida, desce as escadas apressadamente. No andar inferior, a mulher pergunta aonde vai com tanta pressa. "Até parece que vai tirar o pai da forca!"  Ele responde, meio que resmungando, que vai dar uma volta e não demora. Abre o portão e se depara com a rua esburacada de sua casa. Está acostumado com aquela lama e aquela buraqueira toda, porém dessa vez tudo lhe parece monstruoso, uma agressividade a seus olhos; muito diferente do mundo das fotografias pelo qual havia simpatizado. apesar desse embate, não se detém; continua prosseguindo pela rua , sempre em linha reta, desviando-se apenas de eventuais bicicletas que com ele disputam espaço  na rua decadente. Uma miríade de feiuras vai encontrando em seu caminho: esgoto a céu aberto; capim  crescendo solto e encobrindo os meios-fios; moradias em condições precárias; gente triste olhando-o pelas janelas; crianças descalças correndo correndo de um lado para o outro, gritando, sapateando numa lama fétida de aparência sinistra. Ao comparar o mundo real com seu álbum de fotografias, mundos tão distintos, o homem tem um colapso nervoso. Gira seguidas vezes em torno de seu próprio eixo, como quem procura algo e desespera-se por nada encontrar. Tem ímpetos de gritar, e grita, e cai de joelhos e começa a chorar. O incidente intriga aos transeuntes, que de pouco em pouco vão se aglomerando ao redor do homem que julgam louco. Alguns riem ou fazem cara de pena, como se com isso quisessem dizer: "Coitado, tão novo e já lélé da cuca!" Outros batem fotografias, como se diante de algum acontecimento extraordinário ou de grande relevância. Logo a polícia chega, apitando estridentemente, dispejando a multidão. Resta apenas o homem, ajoelhado no chão. Levam-no preso. Na delegacia, fica detido numa cela minúscula e pouco iluminada. O café da manhã é ruim, em nada melhor que o almoço ou o pão endurecido e o café aguado que lhe dão como lanche da tarde; à noite, uma intragável sopa de sabe-se lá o que. A um canto da parede, ele senta e retira do bolso traseiro um retrato de seu álbum de fotografias. Devido ao ocorrido nas últimas ciscunstâncias, ela está desbotada, mas ainda assim é possível distinguir os contornos do monumento à Iracema, obscurecidos pelo pôr do solo. Faz que vai chorar, e chora abundantemente. Nesse exato instante, ouve-se passos do lado de fora e o carcereiro abre-lhe a porta da prisão. Ele está livre, mas leva alguns segundos para se dar conta. Ergue-se lentamente. as costas doem. O carcereiro devolve-lhe a câmera com a qual fora detido, pois não eram osa casos de suiídio na delegacia. Acompanhado pelo guarda, segue por um correodr até alcançar a saída. Do lado de fora a claridade é mais intensa, fere seus olhos. ele os protege com o antebraço esquerdo.
Pela rua íngreme da delegacia ele vai seguindo, a câmera em seu pescoço balançando para lá e para cá. Seus passos são cadenciados, medem cada milímetro do retorno para casa. Quase não nota a presença de um mendigo esfarrapado diante da porta de uma sórdida padaria; ele divide com seu cachorro um pedaço de sanduíche. O homeme se detém diante de cena por alguns instantes e bate uma fotografia. Em seguida, vasculha os bolsos e lhe atira duas duas moedinhas em sua caixa de esmolas. O mendigo não agradece a atitude, acostumado que está àquele gesto banal das pessoas que se querem fazer boazinhas e irem para o Céu. Como se não o notasse ali, continua a dividir o lanche com o cachorro. O homem prossegue sua caminhada ladeira abaixo, deixando para trás o mendigo e seu companheiro. Porém no seu rosto, agora, brilha um sorriso.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Só a Deus

Até bem pouco tempo, eu era um ser livre. Vivia por aí, de galho em galho, devorando frutas e cantando, quando vontade me dava. Com nada precisava me preocupar, porque Deus havia me presenteado o céu. Peregrino eu era: na primavera, aqui - no verão, acolá. Mas um dia a desgraça recaiu sobre mim. Fui enganado, covardemente enganado por uma cesta de frutas tentadoramente perigosa. Minha barriga rongava.  De pulinho em pulinho, esse meu jeito de caminhar, fui até lá, mas não pude me esbaldar, porque logo uma estranha floresta de gravetos acercou-se de mim. Gritei, gritei, gritei. Mas ninguém me ouviu. Me jogando contra aquelas árvores magrinhas, tentei derrubá-las, mas uma força maligna as mantinha de pé, fortes, inabaláveis, apesar da aparência frágil. Cheguei à exaustão, e com ela a noite. Como se o dia também estivesse cansado, ele se desfez em crepúsculo. Adormeci e sonhei que era capturado. Acordei. Não era sonho. Agora uma estranha criatura sem pêlos, que caminha sobre duas patas, me carregava. Tentei lhe perguntar para onde íamos. Não me respondeu; ou era mouco ou não entendia meu idioma.
Fui levado para um lugar ainda mais sinistro. Lá, outros companheiros também haviam sido capturados. Não pareciam abatidos - pelo contrário, até cantavam. Perguntei-lhes como podiam se submeter àquela situação.
 - Até que essa vida não é tão má, respondeu-me um sabiá de coleira. Aqui não nos falta comida e não precisamos nos preocupar em sermos devorados por algum predador sorrateiro qe venha nos surpreender na hora do sono.  Podemos ficar tranquilos.
Eu jamais ficaria tranquilo, estando preso naquela coisa esquisita..
Com o passar dos dias, comecei a sentir falta de minha antiga liberdade, tão drasticamente reduzida. Ficar saltando de um puleiro a outro não era o mesmo que que saltar de galho em galho, nem comer alpiste era tão bom quanto bicotear mangas madurinhas. Como em protesto, deixei de cantar; nunca mais ouviria-se a beleza de minha voz nas manhãs ensolaradas. Só a Deus eu cantaria. Só a Deus.

Barata cascuda

Quando revirava alguns livros, lá encontrei ela, tímida,  entocada entre Maria Helena Cardoso e Rubem Braga. Olhou para mim com seus olhos miúdos, estagnada pela surpresa de ter sido pega em flagrante. Não reagiu à minha presença intrusa. Balançando suas compridas antenas, apenas me observou. Para ela, eu era uma espécie tão curiosa quanto ela o era para mim. O fascínio era mútuo.
Como saído de um estado de transe, peguei um dos livros que estavam na estante, o que tinha quinhentas páginas e capa tão grossa que mais parecia  madeira. Continuei encarando a criatura asquerosa, dessa vez nem um pouco fascinado. Intenções nada amigáveis bailavam em minha cabeça. Ergui o livro para o alto, acima da cabeça, sem contudo tirar os olhos do animal. Seus olhos lustrosos me fitavam como se pedindo clemência. Mas fui irredutível.De repente, ficou tarde para voltar atrás.

Hóspede indesejado

Quando mamãe disse que receberíamos uma visita, eu não esperava que fosse a de um folgadão como o meu tio. Mais respeito, menino! Sim, mamãe, é o que ele é. O homem entrou em nossa casa sem cumprimentar ninguém, esparramou-se no sofá, tomou de mim o controle da televisão, mudou meu canal favorito para um programa nojento de piadas indecentes, tirou os sapatos, jogou os pés sobre a mesinha de centro e meteu a mão na minha pipoca; depois, para desfechar o cúmulo do absurdo, me mandou lhe pegar uma cerveja: "Depressa, fedelho, que eu estou morrendo de sede." Tente compreendê-lo, querido; seu tio é um homem do campo, ignora como as coisas na cidade funcionam.
Para mim, ele sabia das coisas muito bem - tão bem, que já estava se achando o rei do pedaço. O tempo todo me dava petelecos a troco de nada, e se eu ia reclamar, mamãe sempre ficava do lado do irmão: que, se ele me dava uns cascudos de vez em quando, é porque eu tinha feito por onde. Não aguento mais ele, mamãe: o homem fede, ronca, vive com a mão metida nas calças e, como se não bastasse, ainda solta puns tão fedidos que por onde ele passa as plantas murcham e os passarinhos adoecem. tenha paciência, querido. Ele não vai ficar aqui, morando com a gente, pelo resto da vida; já me garantiu que, quando arranjar um emprego, vai logo embora. E a senhora ainda acredita nisso? Quando esse homem arranjar um emprego, mamãe, eu já vou estar careca e gagá - morando bem longe daqui, graças a Deus.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Entrevista de emprego

Acordou-se mais cedo que de costume e vestiu sua melhor roupa - nada muito exagerado, precisava causar boa impressão, não espantar ou ferir a  vista de seu entrevistador com alguma coisa muito berrante. Teve receio de usar perfume,  talvez pudesse não agradar. Na dúvida, não usou nada: saiu de casa com o cheiro do próprio corpo depois de lavado, assim sentia-se mais seguro. Estava confiante de que o emprego seria seu.
Ao chegar à entrevista, deparou-se com uma fila infindável de concorrentes. Assustou-se. Não esperava encontrar tantos candidatos interessados numa vaga tão sem importância, e a agência de empregamento não o advertira do que teria a enfrentar. Tudo o que recebera fora uma carta em sua caixa de correspondências comunicando a proposta de emprego. "Levar prancheta", dizia uma nota de rodapé. Não tinha prancheta, teve que comprar uma.
Na sala de espera abarrotada, uma secretária peituda passou distribuindo uma folha a cada um dos presentes: o formulário a ser preenchido. Suou frio. Quase nunca se dava bem com formulários, não conseguia ser sincero e acabava preenchendo tudo com mentiras: escolaridade - ensino superior; curso - doutorado em letras. Quando a secretária aproximou-se, não olhou o papel, olhou seus peitos. Eram descomunais. Nunca tinha visto peitos tão grandes em toda a sua vida - evidente que eram artificiais. Naturais ou não, quem estava ligando para aquilo? Imaginou mil safadezas.
Diante daquele formulário, decidiu que seria honesto; preencheria tudo conforme a verdade, mesmo que ela não lhe fosse favorável. Quando devolveu o papel, sentia-se aliviado. A certeza de que arranjaria o emprego tornou-se cada vez mais viva.
Alguns instantes depois, começam a ser chamados os primeiros candidatos qualificados ( Francisco, Antônio, João), mas sua vez parecia nunca chegar. Estava prestes a levantar e gritar erguendo as mão para o alto: "Eu! Eu! Eu estou aqui! Por favor, me escolham!" A sala ia-se esvaziando e nada de seu nome ser convocado.Desesperou-se. Não havia conseguido.
Impaciente já, levantou-se e foi beber um pouco de água, o que não diminuiu sua tensão; mais um pouco e teria um colapso nervoso. Cansado de esperar, saiu às pressas do recinto abafado e ganhou a rua.
Instantes depois uma voz masculina ecoa da outra sala:
- Antônio Guilherme Araripe!
Mas ninguém responde.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Como passe de mágica

Fico pensando comigo, pensando, pensando... Como seria maravilhoso se tudo o que desejássemos, pudéssemos ter em mãos - como num passe de mágica. Todas as coisas tristes desapareceriam do mundo. Não haveriam mais guerras, nem mortes ou assaltos. As pessoas seriam mais gentis consigo mesmas e com a natureza, aprenderiam a preservar as coisas boas da vida. Deus ficaria feliz  com todo mundo e faria chover purpurina.
Queria eu poder, com um simples estalar de dedos, tornar todas as coisas possíveis. Faria mamãe parar de pegar tanto no meu pé: menino, não faz isso! menino, não faz aquilo! Olha a chuva, manino! Vai pegar um resfriado! Também faria algumas coisas desaparecerem - como o dever de casa, por exemplo. Agora ele está ali, sobre a mesa, olhado para mim com cara feia. Fique sabendo que não tenho medo de cara feia não, viu? Mostro minha língua para ele. Sei que mamãe reprovaria essa atitude. Ela diz que isso é coisa de menino sem educação; menino direito não faz coisas como mostrar a língua, erguer o dedo do meio ou dizer palavrões. Bem, mas ela não está aqui para saber o que fiz.
Mal acabo de pensar nela e já ouço sua voz, vinda de algum distante lugar. Está dando uns carões em minha irmã. Mamãe vive fazendo isso, dando carões nas pessoas (mesmo nos adultos), é quase um hábito seu. Ela nunca vai se conformar com o namoro da filha. Mas não pode fazer nada além de gritar, como está fazendo agora. Sua voz é esganiçada. Tenho pena de minha irmã. Mas, por um lado, admiro-a. Não é qualquer um que teria fibra para aguentar tanto desaforo calado, isso é demais até para um filho. Eu já teria me alterado e feito alguma besteira.
Ouço passos se aproximando. Sei que é mamãe, pois ela tem uma cadência única em seu caminhar, batendo firmemente os calcanhares no chão, acho que para melhor intimidar.
Intimidar... Essa é a sua técnica para tudo. Às vezes, confundo-a com um general. Em casa, sinto-me numa base militar. Suas ordens devem ser obedecidas à risca, do contrário...
Sinto sua presença cada vez mais forte. Ela é como uma sol, irradiando calor a quilômetros de distância. Sua mão toca a maçaneta, gira-a vagarosamente. A porta range nas dobradiças.
Mais que depressa, corro para os meus livros e cadernos, finjo que estou empenhado no dever de casa. Ela olha, dá um sorrisinho sem mostrar os dentes, como se dissesse " muito bem, continue na linha", e vai embora. Volto para a janela e continuo observando a cinzenta paisagem urbana, pensando, pensando...

Difícil entender

Já disse, não quero nada no meu aniversário. Mas parece que ela não entendeu muito bem o recado. Agora está preocupada com o que me dar. Já pensou em gravatas. Odeio gravatas. Pensou também em um par de meias e um conjunto de cuecas. Todas essas coisas, tenho aos montes, entulhadas nas gavetas, espalhadas pelo quarto. Vou ficar bem sem elas.
 - Então diga o que queres, homem! Se não diz o que queres, morro de aflição.
Já disse o que quero, então pode ficar sossegada. Não vou ficar ofendido se não receber nada dessa vez, pelo contrário. Todo ano ganho alguma coisa de você e do pessoal, que também sempre anda preocupado em  agradar. Presentes são bobagens. Apenas um sorriso, uma abraço ou mesmo um tapinha nas costas me bastam. Me bastaria um "Parabéns!", sem festas ou griatarias.
 - Mas isso não é presente, homem. Diga de uma vez o que desejas, qualquer coisa. Não sou sovinas.
Tudo bem, querida. Já que você insiste tanto, vou lhe dizer o que quero: deixe-me quieto, estou cansado, preciso dormir.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

O sufoco de uma adolescente para não perder a hora

Para minha irmã, que hoje acordou e descobriu que tinha perdido a hora de ir para o colégio.


Mais uma vez ela se atrasara para a escola. O pai havia lhe prometido um novo despertador, pois o que possuía constantemente lhe deixava na mão: ora despertava demasiado cedo, ora tarde demais; daquela vez o alarme sequer havia soado. Despertara-se uma fera, determinda a não perder mais aquele dia de aula. Xingou alto, atirou coisas no chão, como se tais gestos abruptos bastassem para reverter a situação em que se encontrava. Porém nada parecia funcionar, tudo contribuindo para deixá-la ainda mais nervosa. A mãe dizia que a menina tomava café demais; aquilo lhe estava atacando os nervos, que por si só já eram fragilizados. A menina, por sua vez, defendia-se: o que, afinal de contas, a mãe estava querendo dar a entender com aquilo? Não era esquizofrênica! Porém a verdade revelava-se totalmente outra. Quanto mais transcorriam as horas, mais incontida ela se tornava. Quebrava coisas. Falava alto. Batia os calcanhares contra o chão. A mãe lhe dava um puxão de orelha. A menina se continha por alguns instantes, mas logo descontrolava-se.
Naquele dia ela precisava, de qualquer maneira, ir à escola; que chovesse adagas, que a cidade fosse invadida por um furacão - precisava estar na escola no horário previsto. Não que algo especial, como um provão ou alguma atividade de maior relevância, fosse acontecer. Havia perdido muitas aulas. Não era uma aluna desinteressada, como a maioria de suas colegas, e aquela falta estava lhe deixando aflita. Há dias o pai vinha lhe prometendo um novo despertador, porém nunca cumpria sua promessa. Isso a exasperava. Quando ia cobrá-lo, mais ainda ele protelava sua dívida.
Mesmo atrasada, a menina arrumou-se como num dia qualquer. Vestiu seu uniforme escolar. Penteou os cabelos. Usou mequilagem. Olhou-se uma última vez no espelho e saiu apressada.

terça-feira, 26 de abril de 2011

De olhos fechados

Uma vez me perguntei até onde a força humana era capaz de lançar uma pedra. Apanhei uma pedra de riacho e fiz eu mesmo um teste: concentrando todas as minhas forças, lancei-a o mais longe que pude. Bom, ela não foi tão longe assim; ricocheteou algumas vezes na superfície espelhada da água e depois afundou poucos metros adiante de mim. Confesso que fiquei decepcionado, mas não desisiti de alcançar meu intento; apanhei outra pedra e lancei-a o mais longe que pude. E, mais uma vez, não tive sucesso.
Voltei para casa frustrado e envergonhado de minha limitada capacidade como homem. Não jantei. Fui direto para o quarto, tranquei-me e adormeci. Não tive sonhos.
Na manhã do dia seguinte, acordei e tomei o meu café como se o dia anterior não tivesse havido. Queria trabsformá-lo num borrão, apagá-lo de minha história.
Foi quando me bateram à porta. Estava mastigando um pedaço de pão e olhei o relógio: era cedo para ser incomodado, mas ainda assim fui atender ao chamado. Nada encontrei além de uma bola de papel amassado jogada no chão. "Moleques!", gritei para o nada.
Em seguida, tomei o embrulho nas mãos. Ele pesava mais que o normal. Abri-o, então, e lá dentro estava uma pedra. Li o bilhete rabiscado no papel:

"Feche os olhos
e acredite."

De imediato, não entendi as palavras ocultas naquela mensagem enigmática. Porém desconfiava que tivesse algo a ver com o que acontecera no dia anterior. A pedra envolvida no papel tinha uma assombrosa semelhança com a que eu havia atirado no riacho.
Só nas últimas horas do dia foi que voltei ao richo, mas não sem antes relutar um bocado. Não queria novamente provar de meu fracasso.
A princípio, fiquei apenas sentado à margem do riacho, comprimindo a pedra que aos poucos ia aquecendo-se na palma de mina mão.
"Feche os olhos e acredite". Não parava de pensar naquele bilhete esquisito. O pôr do sol descortinava-se à minha vista, enquanto minha cabeça divagava. Experimentei fechar os olhos, como recomendava o bilhete. Mas em que deveria acreditar? Deixei que o som do vaivém da correnteza embalasse meus pensamentos.
E foi então que entendi, entendi tudo. Uma chama de auto-confiança novamente ardia em meu espírito. Levantei-me e apertei com maior segurança a pedra em minha mão. De olhos fechados, lancei-a para longe. Daquela vez, havia conseguido. 
  

"Obrigado, Senhor!"

"Somos todos ingratos!", li certa vez esse trecho não lembro mais onde. Bom, não importa. Importa que agora ele me levou a refletir melhor sobre alguns aspectos da vida, me fazendo enfim enxergar que tal afirmativa não tem valor algum. Sim, porque há muitas maneiras de se demonstrar gratidão, não apenas usando-se de palavras. O simples ato de respirar é tembém ato de gratidão. Quando enchemos nossos pulmões de ar e  o exalamos, é como se estivéssemos dizendo:"Obrigado, Senhor!", mas de um modo que só os anjos conseguem entender.

Mascando chiclete

Desde quando éramos molecotes arruaceiros, mamãe nunca permitiu que mascássemos chiclete; que disséssemos algum palavrão, vá lá, mas mascar chiclete - nunca! Seu argumento infalível era que, quando mascávamos chiclete, parecíamos jumentinhos mascando capim; além do mais, ela não suportava aquele barulhinho irritante de borracha que a mastigação produzia: nhéc, nhóc, nhéc, nhóc. Irritava-se logo e metia um safanão em  quem quer que estivesse mascando o detestavael chiclete em sua presença.
Receosos de que fôssemos pegos, mascávamos chiclete na rua, às escondidas. Éramos doze, ao todo, e juntos formávanos uma espécie de sociedade secreta - como os Cavaleiros da Távola Redonda, só que em maior número.
Nosso segredo só era revelado com a ida ao dentista. Ele, de lanterninha em punho, examinhava nossa boca cutucando nossa língua com um palito de picolé; fazia umas caretas que os médicos fazem quando descobrem que algo não vai bem e sentenciava :"Este gurio tem cáries". Mamãe nos lançava aquele olhar que conhecíamos tão bem.
Depois da consulta com o dentista, morríamos de medo de voltar para casa, pois sabíamos - ah, e como sabíamos! - que a maior surra de todas as nossas vidas nos estaria aguardando.
Porém não tomávamos jeito nunca. Mal nos curávamos das pancadas e beliscões que mamãe nos dava, estávamos reunidos novamenste para mascar o bom e velho chiclete.
E aos poucos nossa sociedade foi crescendo, agregando os novos garotos que chegavaam ao bairro, de modo que nos tornamos uma organização tão complexa, que nem mesmo mamãe (ou a polícia) era capaz de frear nossos atos ilícitos.

domingo, 17 de abril de 2011

Um cara bacana

Na minha memória a imagem de meu avô materno sempre se conservou como um fantasma, uma sombra a bem dizer indistinguível num passado nebuloso. Nunca o cheguei a conhecer pessoalmente. Por uma tragédia do destino, vovô partiu-se desta vida antes que eu viesse a descobri-la. Todas as informações que tenho dele, portanto, são apenas relatos - e dos mais sombrios.
Por mamãe eu soube que ele era um bêbado. Poucas eram as vezes em que estava sóbrio para fazer um carinho na filha. No entanto, era de minha mãe que ele mais gostava. Quando estava doente e precisava de ajuda com os remédios, era a ela que ele procurava. Com sua maneira ríspida de tratar as pessoas, mandava que ela fosse à farmácia ou ao mercadinho de seu Carlito - e que segurasse bem firme o dinheiro, do contrário levaria uma surra que nunca mais esqueceria. Mamãe então apertava tão firme as moedinhas que vovô lhe confiava, que depois não conseguia mais libertar os dedos. (Certa feita, ao atravessar a rua, um carro surgido não se sabe de onde atropelou mamãe, jogando para longe seu corpinho magricela. Vovô, que acompanhava tudo da varanda de casa, prontamente acudiu a filha, mas para constar se ainda guardava o dinheiro que lhe confiara. Milagrosamente, mamãe apertava as moedinhas na palma da mão direita.)
Da parte de minha avó eu soube que ele era um brigão. Às vezes, quando estava bêbado, batia nela.
Uma das coisas que mais detestava era "o povo da igreja". Esse ele queria ver de longe, assim como o diabo quer ver distância da cruz. Vovó até que tinha esperanças de converter ele, mas o coitado morreu antes que pudesse ajeitar a vida. Mamãe acredita que agora ele esteja no Inferno, jogando baralho com o Satanás.
Como eu disse anteriormente, não cheguei a conhecer vovô pessoalmente. Mas, se o tivesse conhecido, não o julgaria assim, tão precipitadamente. Talvez houvesse existido alguma coisa boa dentro dele, é que ninguém se importou em procurar. Talvez mesmo ele fosse um cara bacana.

Sol e chuva

Embora detestasse os dias de chuva, Berenice ficava contente quando estes eram precedidos por um lindo e radiante sol de verão. Não ficava contente por si mesma, mas por alguma viúva que estaria subindo ao altar àquela hora. Segundo o que se dizia, quando um dia de chuva era precedido por uma manhã ensolarada, era sinal de que  uma viúva estaria reatando laços matrimonias. Que bom para ela! Berenice sentia-se feliz, mas torcia para que a chuva fosse logo embora, pois anciava por retornar às suas briancadeiras e peraltices de menina

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Livros e solidão

Era uma tarde de quarta-feira e, como de costume, eu me entregava aos prezeres de uma boa leitura, desfrutando da calorosa companhia de meu querido Fran Martins. Inesperadamente, entrou na biblioteca uma senhora de meia-idade e ficou rondando as prateleiras. Não liguei atenção à sua pessoa, de modo que não posso precisar ao certo  se a mulher usava calça jeans  ou se seu cabelo estava desgrenhado - essas fuilidades que geralmente nos prende a atenção quando não temos nada mais importante para fazer do que ficar reparando nos outros. Eu tinha muito o que fazer, portanto o que acontecia ao meu redor pouco importava; acredito até que, se caísse um aeroplano sobre aquela biblioteca, eu morreria agarrado ao livro do Fran Martins  e iria para o céu tranquilo, se Deus me permitisse levá-lo comigo. Caso me  negasse, eu daria meia-volta e aceitaria o inferno de bom grado, desde que me reservassem um cantinho para ler o autor querido. ( Sim, já me disseram que minha paixão pelo Fran é doentia. Bom, eu não ligo. Esse é um câncer que gostaria de levar comigo ao túmulo.)
A mulher ainda rondou as prateleiras por um longo período de tempo. Via-se que tinha gostos literários refinados, pois vasculhava as lombadas da ala reservada aos clássicos. Retirando um grosso volume, finalmente foi-se sentar na cadeira diante de mim, porém não o lera. A mulher ficou me encarando por um bom tempo, até que me fez uma pergunda indiscreta. Queria saber se eu era casado. "Não", respondi. Não era casado. Voltei à minha leitura, achando que enfim havia aplacado a curiosidade da mulher. Porém estava enganado. Logo em seguida ela me flechou com outra pergunta, direta, sem rodeios. Queria saber se eu tinha namorada. Não, também não tinha namorada.
"Que pena!", disse ela então. "Um rapaz tão moço..."
Eu não lhe tinha revelado minha idade, porém não era preciso possuir uma bola de cristal para se chegar a uma conclusão tão óbvia. Estava tudo na minha cara... ou nos meus olhos, para ser poético, embora eu nunca tenha sido capaz de revelar a idade de alguém apenas olhando-o nos olhos.
"Mas era de se desconfiar", continuou a mulher, não dando vez para que o assunto morresse. "Gente que vive metida com a cara nos livros é sempre solitária."
Meu dia, que até então estava indo bem, de repente  ficou nublado. Quem aquela fulana estava pensando que era para falar comigo daquela maneira? Não tive cabeça para mais nada. Retirei-me da sala, carregando debaixo do braço o Fancisco.
Em casa, não tive apetite para o jantar. Tranquei-me no quarto e fiquei pensando no que a estranha me dissera ainda mais cedo: "Gente que vive metida com a cara nos livros é sempre solitária..." Que absurdo! A mulher não fazia ideia do que estava falando. Provavelmente estava bêbada ou era mais uma daquelas ignorantonas que se achavam donas de todo o conhecimento e de toda a verdade.
"Que absurdo!...", pensei comigo, e fui ao armário onde havia guardado o livro de Fran Martins, "Mar Oceano". Lancei-me na cama e retomei a leitura de onde a havia interrompido. No quarto silencioso, reinavam a paz, a noite e a solidão.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Por uma boa causa

Mariana desconfiava que o namorado a estivesse traindo. De uns dias para cá, havia-o notado cada vez mais atencioso, mandando-lhe flores diariamente, acompanhadas de bilhetinhos apaixonados. Só podia estar enrolado com alguma outra e agora remoía-se de culpa! Mas se pensava que iria enganá-la com alguns agradinhos bobos - ah, mas estava muito enganado!
Mariana decidiu que deveria  investigar mais a fundo a vida do namorado, seus antecedentes e qualquer outra coisa que pudesse incriminá-lo. Ia regularmente ao seu trabalho, a pretexto de matar saudades, e enchia-lhe de perguntas: A que horas voltaria para casa? O que faria depois do expediente? Por que não aproveitavam para darem um passeio? A noite prometia ser agradável.
Agora era Reginaldo quem estranhava: sua namorada estava ficando louca! O que faria agora para palacar aquela mulher? Dava desculpas. Não podia sair a passeios, estava exaurido pelo trabalho. Deixassem para o final-de-semana, então poderiam pegar um cinema.
Mariana não compreendia. O namorado nunca se recusara a nada antes, e só então vinha com aquelas esquisitices, alegando indisposição que nunca tivera. Antigamente, estavam sempre em concordância com tudo, e agora aquela dissensão. O namorado tinha outra. Sim, a outra estava roubando todo o tempo que era seu.
Um dia resolvera meter Reginaldo contra a parede, exigindo que confessasse sua culpabilidade.
O namorado esquivou-se o quanto pôde, mas no final acabou entregando os pontos: tinha sim uma namorada, e ela se chamava Beatriz.
Porém aquilo não bastava. Mariana queria mais, queria saber onde a rapariga morava, qual o número de seu telefone.
Reginalndo mentira sobre tudo, desde o início, afirmando que tinha uma amante. Dera um endereço qualquer para Mariana e um número de telefone inexistente. Mentira por uma boa causa. Ao menos a namorada agora estava satisfeita.

Segunda-feira

Hoje é segunda-feira e não há nada que a torne diferente da segunda-feira anterior. Às nove horas já estou desperto, porém indisposto a levantar-me da cama. Passo mais algum tempo deitado, meio que indeciso quanto ao que fazer das horas livres que terei ao longo do dia. Talvez leia um livro ou escreva alguma coisa. Talvez assista a um programa na tevê. Gosto de desenhos animados, eles me fazem rir um pouco - ao contrário dos telejornais, sempre carregados de novidades trágicas. Hoje eu não quero saber a quantas andam a guerra no Oriente Médio. Pouco me interessa saber quem matou quem a quantas facadas, ou o que será dos japoneses, depois de terem sofrido enorme tragédia. Não me leve a mal, é que prefiro estar à parte de tudo isso. Também não suporto ver meus irmãos combatendo-se em guerras, enquanto aqui estou de camarote, assistindo a tudo pela tevê.
Sei que esta segunda-feira será como as demais outras. Daqui a pouco estarei de pé, olhando minha cara enrugada no espelho do banheiro. Enquanto escovo os dentes, estarei pensando em coisas que poderia ter feito e deixei de lado; estarei pensando em meus erros, querendo voltar ao passado e consertar coisas quebradas,. Quando criança, eu mesmo consertava meus brinquedos quebrados - não ficavam tão bons quanto antes, mas voltavam a funcionar. Queria poder fazer o mesmo com as coisas da vida.
Daqui a pouco estarei tomando meu café amargo, deglutindo o pão adormecido. E meus pensamentos continuarão vagando por caminhos ermos, até que finalmente a encontrarão. Este, ultimamente, tem sido o único lugar onde posso encontrá-la novamente, abraçá-la mais uma vez; dizer que a amo e que morreria por ela, morreria para que vivesse um pouco mais feliz. Reconheço que errei - errei muito -, e a única coisa que peço é a chance de me retratar. Mas é tarde, demasiado tarde para pedir perdão. Meus erros a magoaram e agora ela se fechou em seu casulo, seu mecanismo de auto-defesa contra as coisas da vida. Seu mundo não mais me pertence. Perdi seu coração.
Já não mais tenho certeza de nada, anão ser de que hoje é segunda-feira, um dia como qualquer outro. Estou deitado em minha cama, contemplando os buracos em meu teto. Daqui a pouco vou levantar. Daqui a pouco vou tomar meu café. Talvez assista a alguma coisa na tevê, se vontade me der. Caso contrário, estarei lendo ou escrevendo alguma coisa.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Promessas não cumpridas

Há tempos ele vinha prometendo a si mesmo: farei isto amanhã. Porém nunca estava disposto a cumprir com suas promessas; ia protelando compromissos indiscriminadamente, despreocupado com a vida. Precisava reencontrar a mãe, que se achava adoentada e asiava por vê-lo antes que sua hora fosse dada, porém não achava que o estado da mãe fosse se agravar de um momento para o outro; a velha era forte, podia esperar. Mas não houve mais tempo: a mãe partira-se desta para melhor antes que reencontrasse o filho. E com o peso da morte da mãe na consciência, o filho martirizou-se e fez um última promessa: não faria mais promessas. Porém não estava com dispoição para cumprir com promessas naquele dia, de modo que protelou seu dever para o dia seguinte. E assim foi protelando, dia após dia, até que um dia a morte lhe viera pedir as contas. No Paraíso, encontrou a mãe, que estava feliz em revê-lo. Abraçaram-se intensamente. Ao menos uma das promessas havia sido cumprida, embora que tardiamente.

domingo, 10 de abril de 2011

Quando eu for um menino grande

Detesto essa vida de criança. A gente nunca pode fazer o que quer,enquanto que os adultos ficam com a melhor parte de tudo. Eles sim podem fazer o que quiserem: andar de ônibus, sacar dinheiro do banco, assistir à filmes proibidos para pirralhos... Criança nunca pode fazer o que quer; há sempre horário pra isso, horário pra'quilo; escola, dever de casa... Mas quando eu for adulto isso vai mudar. Aí sim eu vou poder ficar acordado até tarde e vou arranjar uma namorada... Não, uma só não: talvez duas ou três. Também quero filhos aos montes, mas não irei tratá-los como mamãe e papai me tratam. "Nada de regras!", essa é a regra. Sorvete e chocolate todos os dias.Filmes de terror altas horas da noite. Escola? Nem pensar! Só mesmo o vidão bom. É o que toda criança merece.
Quando eu for um menino grande, desses que têm barba na cara, vou me candidatar à presidência do mundo. E minha primeira atitude em cargo tão importante seria criar uma nova lei mundial, proibindo os homens de fazerem guarras; caso essa lei não fosse acatada, a sentança para o infrator seria dura: muitas cócegas, para lhe ensinar como a vida pode ser boa, se a gente sorri. Também declararia terminanatemente proibida a devastação da Floresta Amazônica e de qualquer outra floresta que estivesse correndo algum perigo. Juntamente com essa delaração, haveria um anexo tratando do direito das árvores, das pedras, dos animais (principalmente do urso panda) e do ar. Por fim, minha última decaração diria respeito à formação de uma irmandade universal entre todas as raças e crenças religiosas, extinguindo-se, desse modo, de uma vez por todas, qualquer tipo de desentendimento e preconceito entre as pessoas. Seríamos felizes, como uma grande e abastada família.
Por eu ainda ser criança, talvez você não dê muito crédito ao que ndigo. Tudo bem. É típico dos adultos uma coisa assim: ignorar o que as crianças pensam, o que querem da vida. Os adultos acham que somos bobocas. Para eles, nunca iremos evoluir.
Eu não ligo que não acreditem em mim. Não ligo que me achem maluco. Estou certo quanto ao que quero, e isso é o que basta.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Primeira convicção

Quando pequeno, eu era uma criatura muito magrinha, as roupas em mim sempre caindo como um saco de batatas. Quem me via na rua sentia pena, imaginando as inúmeras privações a que me submetia. Por isso, não raro eu ganhava das pessoas presentes como: sapatos usados, meias que ninguém mais queria, roupas rasgadas mas que podiam ser reparadas com um ponto de costura aqui, outro acolá... Vovó era especialista em reparar  as coisas velhas que eu levava para csa. Mamãe, ao contrário, não gostava da ideia que faziam de seu menino: eu não era um menino perdido, tinha casa onde morar, cama onde dormir e uma mãe que me amava. Ninguém nunca duvidou disso, afinal todos me conheciam no bairro, mas mamãe era sempre do contra.
Apesar de ser magrinho, eu tinha uma cabeçorra enorme. As pessoas sempre se admiravm do modo como eu conseguia equilibrá-la sobre meu pecoço fininho. Alguns até aguardavam o momento em que eu não a suportaria mais e deixaria que tombasse de vez.
Na rua, a primeira coisa que se vistava era meu cabeção. Então todo mundo ria. Devo admitir que, na época, aquilo me deixava ofendido. Hoje, no entanto, reconheço que não havia como minha aproximação provocar outra reação nas pessoas.
Além das roupas e dos sapatos que nunca me cabiam, também não havia chapéu que cobrisse minha cabeça. Aí eu realmente ficava fulo da vida, porque gostava mesmo de chapéus. Queria me tornar parecido com Airton Sena, porém meu cabeção não permitia.
Certo dia perguntei para mamãe por que tinha nascido daquele jeito. Não compreendia a razão de as demais crianças serem normais, enquanto que eu tinha aquela bola de basquete em cima do pescoço. Ela nunca me respondia, não do modo como eu queria. Ao invés disso, dizia que "se as coisas estavam tortas, então era assim que Deus queria que elas ficassem". Foi a partir desse momento que surgiu minha primeira convicção: "Deus era um cara muito mau".

quinta-feira, 24 de março de 2011

A máquina do amor

Ainda agorinha eu estava, como sempre costumo fazer, "zapeando" por algumas páginas da Internet quando encontrei uma que me chamou a atenção justamente por apresentar a seguinte manchete:

"MAQUINA DO AMOR: novidade tecnológica ainda em fase te teste."

A matéria presseguia discorrendo das mil e uma maravilhas que aquela máquina recém-criada pelos japoneses era capaz de fazer. Basava apontá-la para algum campo de batalha onde estivesse acontecendo uma guerra entre países antes aliados, e eles novamente voltavam a ser amigos; apontasse para as regiões mais miseráveis do continente africano, que tudo - fome, doença, miséria - desapareceria como passe de mágica. O grande dilema da máquina do amor era a concorrência de mercado. As pessoas tinham preferência por outras máquinas: a máquina da dor, a máquina do medo, a máquina do egoísmo - e a mais popular de todas: a máquina da desigualdade. Segundo estimativas, ainda levaria muito tempo para que o homem se familiarizasse com a máquina do amor. Muitas instituições públicas e ongs de todas as partes do planeta até que se mostravam empenhados em ministrar cursos que capacitassem o homem a lhe dar com a máquina do amor, seus circuitos e mecanismos internos. Porém, só aos trancos e barrancos era que ele vinha assimilando aquela novidade.

Conte para mim

Conte para mim os segredos que atormentam seu jovem coração. Eu o ouvirei e o amarei até que um dia se canse de mim. Juntos passaremos noites em claro, sa preciso, e caminharemos pela praia ao amanhecer. De mãos dadas seguiremos sempre, e mesmo em caminhos separados nossos corações palpitarão um pelo outro. Meu pensamento será o seu pensamento. Com meu braço espantarei seus temores, os fantasmas que assombram o sótão da consciência. Com minha espada deceparei cabeças de dragões só para salvar você da torre sombria onde lhe aprisionaram. Em noites frias, meu corpo será o seu calor; meu abraço, um refúgio contra pesadelos. Nunca estarás sozinho quando o medo for maior que a coragem de avançar.
Conte para mim o que escondem olhos tão vagos, sorriso tão incerto estampado numa pálida face. Quero afastar para longe as assombrações que ainda te atormentam, te roubando noites de sono. Assim como um anjo da guarda, estarei sempre pronto para te proteger de vilões mil. E quando não quiseres mais nada, repousa tua cabeça em meu ombro e dorme.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Salve! Salve!

Quando eu era criança e ainda estava na escola, havia uma regra que nos fora imposta pelo diretor: diariamente, antes do término das aulas, tínhamos de nos reunir no pátio para cantar o Hino Nacional. Aí era um problema, porque toda vez que chegávamos na parte do "Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!" eu caía na gargalhada. Não entendia como se podia salvar uma pátria, nem por que ela estava pedindo socorro.
Quase sempre eu era expulso daquelas reuniões solenes, o que achava até bom. De espírito inquieto, não parava sossegado um minuto. E por mais que meus pais fossem convocados à diretoria, eu não tomava jeito - pelo contrário, até me tornava pior, como um modo de me vingar pelo o que haviam me causado.
Hoje compreendo que a pátria não estava pedindo socorro - não do modo como eu pensava. Hoje ela pede que a salvem da corrupção, do descaso das autoridades, da injustiça, da impunidade, do desemprego, da fome, da miséria.

Para não morrer de tédio

Existem muitas maneiras de se evitar o tédio. Uma delas é não pensar em monotonia. Aproveite o tempo para encher sua cabeça com coisas agradáveis - como uma lembrança feliz, por exemplo. Mas caso você não tenha uma lembrança feliz (o que é pouco provável), pense em alguma piada engraçada ou mesmo no programa de humor que você assistiu na tevê semana passada. Duvido que você não vá abrir aquele sorrisão de domingo.
Procure se manter em movimento. Sim, porque o tédio provém da estática. Seja anti-estático: pule, dance, ouça música, ande de bicicleta, faça uma caminhada, passeie com o cachorro, tome sorvete.
Por fim, encontre um bom livro para ler - nada muito cerebral, ou então você vai acabar caindo no sono antes mesmo que possa dizer "amém!".

Coisas irrevogáveis da vida

Há coisas na vida da gente que são irrevogáveis, mas  ainda assim as fazemos - seja pelo prazer que isso nos dá, seja pela total falta de controle que temos sobre nossos impulsos primitivos. Saltar de para-quedas, por exemplo; é algo definitivo. Depois que você está no alto, com os braços abertos em meio ao azul vazio do céu, não há como voltar atrás. Saltar de para-quedas não aceita arependimentos nem devoluções.
O mesmo podemos dizer quando o caso é atravessar uma rua. Você nunca poderá atravesar a mesma rua num mesmo sentido duas vezes seguidas. Cada vez será como a primeira.
Para ilustrar melhor, digamos que o par de tracejados abaixo represente as duas extremidades de uma avenida e que o X numa de suas margens seja você:

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X

A não ser que você, assim como as amebas, tivesse a capacidade de se dividir em dois, a trarefa de atravessar essa rua num mesmo sentido duas vezes seguidas seria algo impossível.
Podemos também considerar como parte irrevogável das coisas da vida o ato de embarcar num ônibus por engano. Mesmo que você tome o ônibus certo depois, isso não muda o fato de que seu percurso habitual para o trabalho, casa ou escola foi alterado; que você, mesmo sem querer, acabou fazendo um tour por algum lugar desconhecido da cidade. Em algumas ocasiões, isso até que não pode ser tão ruim, como quando uma amiga me relatou de sua aventura no interior de um ômibus que tomara achando que fosse o que costumava pegar. Ela só se deu conta de que havia cometido um engano quando o dia começou a escurecer e o ônibus não chegava ao destino desejado.
Para encerrar minha crônica, vou me arriscar afirmando que uma das coisas irrevogáveis em nossa vida é o amor. Quando você se entrega a esse sentimento, perde-se em seus muitos caminhos. Não há como desfazer os seus laços. Ele será para sempre aquele fraquejo nas pernas, um palpitar mais intenso, um pensamento meio bobo. Como diria nosso colega Luís: "é um nunca contentar-se de contente; um cuidar que ganha sem se perder." 

quinta-feira, 17 de março de 2011

Rubem, meu camarada!

Estou aqui com um volume de crônicas do Rubem Braga que tomei emprestado e não mais devolvi. Todos os dias prometo a mim mesmo que qualquer hora dessas irei devolvê-lo, porém quando me decido chegar às vias de fato, prestes a retirar o livro que há tanto tempo ficara acomodado em minha estante, me vejo tomado de nostalgia antecipada. E penso comigo :"Rubem, meu camarada! Tivemos tantos bons momentos juntos. Por que estragar tudo dessa forma? Vamos deixar de besteira! Volte para o seu cantinho e fique à vontade".

terça-feira, 15 de março de 2011

Suicídio

Não era de agora que ele vinha com aquela ideia maluca na cabeça. Porém faltava-lhe coragem para concretizá-la. Caso enfim pusesse em prática seu intento, alguém sentiria sua falta? Não tinha muita certeza quanto a isso. O mundo lhe parecia tão indiferente! Era certo que nada deixaria de funcionar só por causa de sua partida. Os automóveis prosseguiriam em seus cursos, as pessoas continuariam com o ritmo alucinado de sempre. Os dias transcorreriam e ele finalmente seria esquecido.
A ideia não lhe saía da cabeça: SUICÍDIO. Precisava decidir-se, ou então nunca tomaria nehuma atitude. A faca estava em sua mão, pronta para consumar o ato. Seu pulso batia acelerado, cheio de vida.
Certa vez lera em algum lugar: "Qualquer coisa que você puder fazer, faça-o agora. Não fique aí parado, pensando no que vai fazer. Levante-se e aja!" Sim, era o que faria. Fechou os olhos e encostou a faca no pulso. Sentiu a lâmina penetrar-lhe a carne, e em seguida um mar de sangue. A dor durou pouco tempo. Logo não sentia mais nada.

Mensagem alienígena

Já me disseram que o mundo acabaria antes que eu visse meus netos. Já me disseram que o homem na Lua era uma farsa. Já me disseram até que se eu rezasse bastante e com fervor, minhas dívidas seriam perdoadas. Mas eu queria mesmo era que minhas dívidas fossem pagas.
Não digo que nunca acreditei em nenhum desses boatos; sou humano, e é natural que o homem, assim como os insetos, sejam atraídos para a luz que brilha mais forte - até que seu corpo franzino queime com o calor e desabe inerte sobre milhares de outros. Boa parte do que me disseram ainda está para acontecer.
Meu vizinho, por exemplo, disse que ainda ontem  manteve contato com alguns seres extraterrestres e obteve a seguinte mensagem: VOLTAREMOS EM BREVE, assim mesmo, em letras de forma e em português. Não posso negar que o fato me intriga, porém às vezes me pergunto se o velho não confundiu o letriro luminoso da pizzaria ao lado com a mensagem de algum homenzinho verde.

Ciranda

Sua brincadeira predileta era a ciranda. Podia-se reunir o maior número de amigas e girar, girar, girar, até ficar tonta e cair no chão. As cantigas era sempre conhecidas e repetidas várias vezes ao dia, mesmo quando não se estava em roda.
Ricardina ficava triste quando o dia era de chuva e toda a rua ficava debaixo d'água. Dias e dias passava trancafida no próprio quarto, observando o dilúvio que não dava sinal de trégua. As nuvens lá no alto pareciam irremovíveis. Queria ter superpoderes, assim espantaria com um único sopro todas elas, assim como se espanta fumaça. Não, talvez fizesse alguma coisa mais gostosa: se tivesse uma varinha mágica, transformaria tudo em algodão doce. Então comeria tudo sozinha, deixando entre as nuvens um espaço para o sol.
Olhando assim fixamente, as nuvens lhe preciam ovelhas negras. Queria poder tosqueá-las, assim elas não ficariam atrapalhando mais nada.
Porém nenhum desses poderes ela possuía. Era apenas uma criança de imaginação fértil, querendo se divertir um pouco.
E as nuvens continuavam lá no alto, pesadonas, como soldados de um grande exército. Juntando ambas s mãos, a menina começou a rezar, lembrando-se do que os fiéis faziam quando íam à igreja. Se Deus era bom e gostava das crianças, como diziam, iria atendê-la sem demora. Rezou ainda mais, com os olhinhos exageradmente apertados para demonstrar que tinha fé. Quando abriu-os, lá estava entre as nuvens uma grande lacuna transpassada por um raio de sol. Ela caiu em gargalhads, de alegria e de satisfação.  

Sorvete, esquimós e presentes de Natal

Sempre achei que as coisas boas deveriam durar para sempre - como sorvete, por exemplo. Alguém explica por que o sorvete derrete em dias quentes? Ou por que todo mundo prefere chocolate em dias frios? Eu queria morar no Alsca. Lá o sorvete nunca derrete, foi o que fiquei sabendo num site da internet, porque a temperatura está sempre abaixo de zero grau, como a geladeira da mamãe. Esquimós não tomam sorvete, ou tomam - secretamente escondidos, talvez? Me disseram que não. Qual a necessidade de tomar sorvete num lugar onde tudo o que se vê é gelo e mais gelo e mais gelo? Agora eu entendo por que em dias quentes as pessos usam roupas cada vez menores. Imagine se um dia a temperatura alcançasse oitenta graus. Todo mundo iria andar pelado! Seria a cena mais horrível de todos os tempos: homens e mulheres, criançs e adultos, adolescentes e velhas mostrando suas partes proibidas para menores de dezoito anos. Ninguém me faria andar na rua com as vergonhas de fora, não mesmo!
Coisas boas deveriam acontecer todos os dias, não só no Natal ou no ano novo. Todos os dias deveriam ser dias de ganhar presente, mas os adultos só lembram que as crianças gostam de carrinhos e de bonecas no dia do aniversário delas ou quando estão muito doentes e têm de ficar internadas em hospitais. Precisamos urgentemente consertar as pessoas, assim mesmo como se conserta alguma coisa quebrada. O primeiro passo quando queremos consertar um carro velho é abrir o capô dele e ver o que tem de ruim lá dentro, depois jogamos tudo fora. Mas aí vem a pergunta que me entristece: E se a humanidade não tiver mais conserto? "Tudo pode ser aproveitado", já disse papai. "Mesmo um pedaço de madeira velha pode servir como uma boa lenha. Um pouco de consciência poderia dar um jeito no homem que polui, que degrada, que destrói. Você não precisa fazer força para ser consciente, basta abrir os lhos e enxergar o óbvio. A receita para preservar eternamente as coisas boas é simples. Precisamos apenas cuidar melhor das coisas enquanto as possuimos."

domingo, 13 de março de 2011

Medo de escuro

O escuro era uma das coisas que ela mais temia. Porém, se perguntássemos por que tinha medo, ela responderia: "Não sei!" Às vezes sentia raiva de ser medrosa. Queria criar coragem assim mesmo como se cria cabelo. Tentou por inúmeras vezes enfrentar seu medo com determinação, mas não durava um minuto de luz apagada e logo começava a gritar.
Como se tudo ainda não bastasse, tinha seu irmão para fazer sarro. O guri ficava o tempo todo ao pé de seu ouvido, repetindo uma ladainha irritante: "Medrosa! Medrosa! Clarice é uma medrosa!" O que ela mais queria nessas horas era ter alguma coisa para quebrar na cabeça do irmão. Qualquer coisa lhe serviria como arma: um travesseiro, um ursinho de pelúcia ou um chinelo velho que encontrasse pelo caminho. Mas o irmão parecia ter uma espécie de trato com o Coisa Ruim, pois ela nunca encontrava nada que pudesse lhe servir de arma.
Mesmo depois de moça já feita, Clarice nunca superou seu medo. Ainda hoje dorme de porta aberta e não permite que ninguém apague seu abajur de cabeceira.

Dorme, criança

Chovia a cântaros. Lá fora, raios e trovões cortavam o céu, provocando ruídos aterradores. A cada ribombar glorioso ela se encolhia debaixo do lençol, como se a frágil película de algodão fosse capaz de protegê-la de alguma calamidade. Consciente de seus temores, abraçava-lhe para que se sentisse em segurança. Quando a tempestade passava e eu percebia que ela havia pegado no sono, surpreendia-me com sua voz incerta: "Fique mais um pouco, papai!" E eu ficava... até que o dia amanhecesse, até que a luz do sol houvesse dissipado seus medos por completo. Em silêncio, apreciava seu sono inquieto (seu corpo estremecia em espasmos regularmente), esperando que a noite seguinte fosse de temporal. Mas nunca era e levava tempos para voltar a ser.
Não me pedia para que contasse histórias, apenas que permanecesse do seu lado; eu era seu anjo protetor. Doía-me pensar que um dia cresceria, arranjaria um esposo, teria filhos que sentiriam sede do seu amor tanto quanto ela agora sentia do meu. Então abraçava-lhe ainda mais, como para agarrar aquele momento-instante e não deixá-lo fugir. Se me perguntava por que a estava apertando tão forte, respondia à beira de lágrimas: "Dorme, criança!"

O achado

Vou virando calmamente as páginas de um velho caderno que havia encontrado no fundo de um gaveta e encontro coisas antigas que andei escrevendo. Recordo o quanto fiquei feliz em terminar aquelas linhas, mas hoje me sinto envergonhado. Como pude escrever tantas bobagens? E pensar que um dia sonhei publicar tudo aquilo!
Acredito que hoje minha técnica de escrita tenha melhorado significativamente e que minhas ideias tenham se tornado menos ridículas. Talvez eu esteja sendo duro comigo mesmo. Talvez eu vá abrir este caderno amanhã e novamente torcer o nariz para tudo o que escrevi.

O sorridente

Havia na nossa rua um pobre coitado que vivia a perambular pelas calçadas, sempre com um sorriso estampado no rosto. Alguns diziam que era louco. Eu, no entanto, diria que ele era um privilegiado, porque a tudo recebia com aquele sorriso que não lhe abandonava, estivesse de barriga cheia ou saciado com alguma porcaria que houvesse catado do lixo.
Devo admitir que sentia enorme admiração por aquele rapaz. Enquanto centenas de outros anônimos lamentavam pelo emprego perdido ou pelos relacionamentos liquidados, ele sorria ante a sua miséria - ele, que tinha pleno direito de chorar, sorria como se tudo fosse plenamente perfeito.
Muitas vezes me peguei me perguntando quais seriam suas origens. Alguma vez tivera um lar para onde retornar no fim de um exaustivo dia de trabalho? Alguma vez tivera um emprego? A essa altura sua esposa talvez estivesse preocupada com o paradeiro do marido desaparecido. Já não sabia mais o que responder ao filho caçula quando este começava a fazer perguntas sobre o pai.
Aquele homem sorridente era uma incógnita - não só a mim, mas como a muitos outros também. Porém talvez  fosse eu o único a demonstrar algum interesse sadio por ele. Os demais transeuntes, quando o viam pedindo esmolas, sentado na pedra fria da calçada, apenas lançavam um olhar intrigado para o seu rosto sorridente e jogavam uma moedinha na lata de leite que ele erguia para o alto. Havia, é bem verdade, aqueles que passavam sem ao menos notá-lo, ou aqueles que passavam de largo, desconfidos de seu sorriso suspeito ou afetados pelo mau cheiro de suas roupas  encardidas, mas esses eram minoria. Ainda assim, era impossível simplesmente ignorá-lo e evitá-lo, pois aos que agiam dessa forma ele persseguia por um bom caminho, sacudindo sua lata com as moedinhas, até que lhe dessem a requerida esmola.
Certo dia ele aparecera na companhia de um vira-lata. Os transeuntes assustavam-se agora duas vezes: por sua aparência degradada e pelo animal que ladrava o tempo todo a troco de nada. O homem sorridente e o cachorro logo se tornaram grandes parceiros, inseparáveis. Aonde um ia, o outro acompanhava, abanando o rabo, a língua pendurada num canto da boca. Com o dinheiro das esmolas, o sorridente comprva um único sanduíche de mortadela na cantina do Jojó e o compartilhava com o cachorro. Imagino que aquela meia banda de pão sequer bastava para aplacar a fome de ambos. No entanto, mesmo com os estômagos roncando, o homem sorria e o cão jamais o abandonava.
Dias depois, uma tragédia se daria. Fora numa dessas manhãs chuvosas, comuns na região serrana de São Paulo. As ruas e as calçadas haviam alagdo. O homem sorridente procurava por seu cachorro, que tinha ido atrás de um abrigo quando aquilo tudo começara. Não o chamava pelo nome, porque nome não tinha, e mesmo se tivesse, não poderia ser ouvido no meio daquela tempestade. Então ele soltava urros animalescos para o alto, na esperança de que o cachorro o atendesse.
Horas depois, encontrou-o entalado numa boca de bueiro, o corpo encharcado já sem nenhuma vida. Tomou-o nos braços e o carregou para longe, desfilando pelas ruas enlamedas onde outrora mendigava. Todos puderam então presenciar a mais curiosa das cenas: um homem vestido em roupas esfrangalhadas sorria, porém seus olhos transbordavam de lágrimas. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

Homens... Todos sempre tão iguais!

Rendido, ele suspira profundamente e  enterra as mãos no bolso da pesada jaqueta jeans. É estranho, pois mesmo sendo um homem de quarenta anos, sua atitude o faz parecer um garotinho que é pego em flagrante no ato de um traquinagem. Nenhuma palavra lhe sai da boca a não ser aquele suspiro.
Camila não esperava que fosse diferente, afinal os homens são sempre os mesmos -  podem mudar as táticas para se conseguir uma boa trepada,  mas basta encurralá-los para descobrir  o quanto são parecidos (mais que isso, até: semelhantes). Quando finalmente são descobertos, tornam-se mudos, enfiam as mãos nos bolsos e botam na cara a melhor expressão "lamento-muito-mas-não-foi-minha-culpa".
Renato não era uma exceção. Na verdade, as exceções eram cada vez mais raras. Não existiam mais exceções como Cristo, Gandhi ou Dalai Lama - homens honestos, que certamente não seriam capazes de ferir o coração de um a mulher, fossem quais fossem as circusntâncias. Não era pedir muito querer um cara assim para o resto da vida.
Desejava ter ouvido sua mãe. Mas estava hipnotizada pelos olhos verdes de Renato, fora laçada por um poderoso feitiço no exato instante em que o encontrara pela primeira vez, numa cafeteria da  Estação da Luz. Ela se lembrava desse episódio como se fosse hoje A cafeteria estava lotada, mas ainda assim pudera disdinguí-lo das demais pessoas quando ele entrou  e sentou-se numa mesa próximo ao balcão do caixa; carregava um jornal  debaixo do braço. Uma garçonete loura e peituda aproximou-se quase no mesmo instante. Teve ciúmes da maneira como ela o recepcionara (estava dando em cima dele!) Mas o que lhe importava aquilo? Na época, Renato não era mais que um estranho e já lhe causava grandes transtornos.
Tornara-se obsessiva: conquistar Renato era sua meta. No dia em que o encontrara na estação, não se falaram de imediato. Renato, na verdade, manteve o tempo todo a cara metida em seu jornal, não dando a mínima para ela.
Nos dias que se seguiram, Camila frequentou a mesma cafeteria assíduamente, embora não fosse fã do café que ali preparavam (suspeitava até que usassem xixi como substituto para a água do café). De todos os modos tentara chamar a atenção de Renato: dirigindo-se a todo instante ao toalete feminino; bombardeando-o- com olhares sugestivos toda vez que ele  baixava o jornal. Porém tudo fora inútil. Quando finalmente decidiu ir até a mesa onde Renato tomava seu café com broas, ele olhou-a e sorriu.
- Tenho observado você esse tempo todo, disse ele. e você é uma pessoa bem estranha.
Daí por diante tudo correra às mil maravilhas. Camila viveu sonho de amor, esbaldando-se no prazer que Renato lhe proporcionava.
Parecia que finalmente havia encontrado o homem dos seus sonhos  quando descobrira um número de celular rabiscado na agenda telefônica de Renato, acompanhado de um bilhete:

"Me ligue quando quiser - Amanda"

Agora ela o indagava, inquisidora: queria saber quem era aquela tal mulher, a da letra redonda. Renato mantinha-se calado, o que quer que dissesse apenas servindo para incriminá-lo mais ainda. Queria ter coragem de confessar, afinal Camila merecia conhecer toda a verdade. Não havia apenas Amanda em sua vida; existiam outras, muitas outras. Porém manteve-se calado.
Homens... Todos sempre tão iguais!      

Tudo o que mais desejo

É um sonho meio bobo esse que eu tenho de viajar num balão, rodar o mundo nessa bolha flutuante e nunca chegar a lugar algum.
Fico imaginando a sensação de estar no alto, mergulhado na imensidão azul do céu. A paz e o siléncio reinam em todos os cantos. Talvez seja essa a morada dos anjos.
Eu queria sempre estar num lugar assim,  distante de todas as coisas aqui embaixo. Quem sabe um dia, quando a morte enfim me abraçar,, eu seja levado para um lugar assim, juntinho de um nuvem. Isso é tudo o que mais desejo, meu Deus.

Amado casebre

Para mama. papa e mana. Todo o amor do mundo pertence a vocês.


Nos meus tempos de moleque, nunca moramos em casa de luxo - para ser sincero, sequer tivemos um teto que pudéssemos chamar de nosso; estávamos sempre em peregrinação, ora morando de favor aqui, ora de inquilinato acolá - mas incertos quanto a nosso paradeiro no dia seguinte. Não obstante esse pequeno detalhe, éramos felizes (ao menos nós, as crianças, embora nunca tenha visto minha mãe reclamar das privações a que nos submetíamos). Lembro que sempre estávamos rindo, mesmo de barrigas vazias As brincadeiras serviam como que para enganar nossos estômagos. E essas eram muitas. Não faltavam árvores em que pudéssemos nos trepar, goiabas que nos pudessem escapar, estivessem de vez ou madurinhas, postadas em galhos rasteiros ou no mais inalcansável dos galhos.
Lembro também que, de todos as casas decentes e malocas onde moramos, a que eu mais gostei fora um pequeno barraco de madeira pintada a piche que nos havia sido concedido por um colega de meu padrasto. O terreno era amplo, mas eu via muito mais que isso: aquele era um reino encantado onde eu poderia fazer minhas brincadeiras (e justamente por ser encantado, não existiam vizinhos ranzinzas para estragar tudo). Gostava de construir casinhas de madeira, e ali tive toda liberdade para expandir minha criatividade. Minha irmã mais nova consumia-se em inveja das barraquinhas que eu construía, mais ainda porque nunca permitia que participasse de minhas brincadeiras. Ela então chorava, esperneava, ameaçava contar tudo para mamãe, que eu na a a estava deixando entrar em minha maloquinha - porém  sempre me mantive irredutível, não querendo meninas em minhas brincadeiras. Seu último recurso era choramingar aos pés de minha mãe, que não resistia a seus apelos e acabava prometendo lhe construir uma cabana tão maior e mais sofisticada quanto a minha. Cumprir com tais promessas, no entanto, era muito raro, de modo que eu  não precisava me preocupar com a concorrência.
Um dia, porém - e eu não sei o que deu nela para tomar essa resolução - mamãe decidiu que iria dar início à construção da prometida casinha. Logo cedo começou a recolher os pedaços de toco e de madeira velha que se espalhavam pelo quintal. De pouco em pouco, a casinha foi tomando forma e  - ai meu Deus, como ia ser grande, espaçosa, um luxo de dar inveja! Fiquei com ciúmes. Mamãe nunca havia se interessado em construir uma casinha como aquela para mim e, de repente, ali estava, construindo um palacete para minha irmã. Comparado àquilo, a cabana de que tanto me orgulhava não passava de um casebre feio e mal construído. Para entrar dentro dele era preciso agachar-se, enquanto que na casinah de minha irmã entrava-se de pé!
Certa feita eu quis participar de suas brincadeiras; já não tinha tantos ciúmes de seu novo brinquedo e até enxergava o lado positivo de ela também possuir uma casinha: agora éramos vizinhos, e como bons vizinhos, tínhamos de viver em harmonia, como bons camaradas. Porém quando me ofereci para entrar, ela bateu a porta e gritou lá de dentro:
- Aqui só brincam meninas!
Sinto falta daqueles tempos, em que tão poucas coisas me atormentavam. Para me fazer feliz, bastavam meus brinquedos, algumas goiabeiras e um fundo de quintal onde eu pudesse correr livremente com os pés descalços. Hoje existem as dívidas, os compromissos inadiáveis, o inferno de amar, meu Deu, o inferno de amar!

terça-feira, 8 de março de 2011

Olhos na distância

Há uma semana ele tinha partido e desde então não mais voltara. Com os olhos na distância, Maristela o aguardava, esperançosa. A todo custo procurava espantar para longe a ideia de que ele nunca mais voltaria, de que as ondas furiosas do mar haviam tragado para sempre o barquinho de pesca  com o qual partira. Bem que insistira para que não fosse, pois os ventos que ultimamente sopravam não pareciam muito confiáveis. Mas o marido, turrão, não lhe quisera dar ouvidos. Voltaria com um bom pescado, garantia, e daquela vez ganharia muito dinheiro, o bastante para enfim saírem daquele miserê em que se encontravam. Compraria boas roupas para ela e para as crianças, talvez até sobrasse um pouco de dinheiro para a reforma do velho barracão. Poderiam viver como pessoas decentes.
- De que vale um vida decente, se em troca disso me for tirado um marido?, ela argumentera no dia de sua partida
- Êh, mas que falta de otimismo! Vai dar tudo certo, mulher.
Não, nada iria dar certo. Ela tinha certeza de que não.
E agora uma semana se passara desde que o marido cabeça dura armara a vela de sua pequena jangada e partira singrando as  vagas revoltosas. Em seu coração,Maristela sabia o que havia acontecido, porém recusava-se acreditar.   

Louvado seja

Louvado seja o canto do galo pela madrugada adentro.
Louvada seja a goteira no meu telhado.
Louvados sejam o ovo frito e o frango assado.
Louvados sejam a meia furada e os sapatos apertados.
Louvada seja aa noite que me permite em seus braços repousar depois de um exaustivo dia de trabalho.
Louvado seja o biscoito velho no fundo do armário.
Louvado seja o salário que é pago sem descontos ou atrasos.
Louvado seja o raio de sol em dias nublados.
Louvado seja o canto dos pássaros.
Louvado também seja o sagrado rock'roll.

O terrível

Na nossa rua todo mundo estava preocupado. Desde que um vira-lata se instalara nas imediações, ninguém mais tinha sossego. O animal rosnava para qeum quer que passasse, fosse homem adulto, criança ou mesmo uma velhinha que voltava das compras de feira (não tivesse ela cuidado, era atacada traiçoieiramente pelos calcanhares). Os mais precavidos andavam sempre armados com algum porrete ou um punhado de pedras, o que só servia para atiçar a fúria do animal. Por essa e por outras,  fora apelidado de "O Terrível" - não que de fato fosse algo de impressionável: o animal era franzino e já alguns dentes na boca lhe faltavam; sua fama devia-se tão-somente a sua bravura.
A não ser por isso, ninguém dava muito crédito para O Terrível; alguns até o consideravam meio burro, pois sua cara conservava uma permanente expressão apalermada. Eu sempre achei que tudo o que O Terrível queria era só um lugar onde pudesse ficar sossegado, livre dos perigos que uma cidade grande representava; talvez por esse motivo viera buscar abrigo em nossa rua. Mas nem os animais encontram repouso na vida terrena, de modo que os moleques, vez por outra, estavam lhe atirando pedras e dando-lhe pauladas.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O esquisito

Ao contrário dos outros meninos, Ricardinho nunca se interessava pelas coisas; ficava sempre amuado a um canto, enquanto a molecada se divertia com as mais diversas brincadeiras. Nunca sorria, pois se não tinha com o que brincar, não tinha também motivos para sorrir. O único som que se ouvira  dele até então fora o seu berreiro ao nascer.
O pai olhava o menino e quase sempre chegava à mesma conclusão: aquilo eram vermes; o menino precisava de um bom purgante. Porém nem purgante  ou qualquer outro remédio contra males de tripas davam jeito na tristeza do moleque.
A mãe, ao contrário, achava que fosse coisa da idade.
- Besteira!, o pai retrucava imediatamente. Vê se o Paulinho é assim, ou então o Gustavinho. Todos agem como crianças normais - crianças normais, Maria Helena. Nosso filho é um retardado.
Durante anos a fio Maria Helena recusou-se acreditar naquela possibilidade. Porém aquilo agora tornava-se  evidente, não só porque o marido  insistia em pensar que o filho sofresse de algum mal da cabeça, mas porque as evidências tornavam-se cada vez mais claras.
Santo Deus! E se aquilo fosse verdade? E se o marido tivesse razão? Quase sempre ele estava enganado,  mas daquela vez... Tudo apontava para um única verdade da qual ela sempre tentara se esgueirar. Mas uma hora não haveriam mais caminhos por onde escapulir, então ela teria que aceitar o fato de que, mesmo com todas as suas esquisitices, Ricardinho nunca deixaria de ser o seu menino.

Família feliz

Quando a tv lá de casa quebrou, foi um deus-nos-acuda para minha irmã. O que ela faria da vida sem suas novelas? Meu padrasto também ficou em situação desesperdadora: uma semana sem assistir aos filmes policiais de que tanto gostava  parecia o fim do mundo. Mamãe não externou sua indignação, mas eu sabia que, no fundo, a tv também lhe fazia enorme falta.
Devo admitir que nossa companheira não me fez nenhuma falta (não tenho hábito de assistir televisão; prefiro me distrair com meus livros e meus escritos - a programação água com açúcar da tevê brasileira não contribuindo muito para ganhar minha simpatia). Portanto, fui o único  que não ficou largado pelos cantos da casa, abandonado ao tédio. Minha irmã, ao contrário, trancou-se por dias no quarto. Meu padrasto procurava chegar mais tarde do trabalho e mamãe tornou-se mais religiosa, passando a maior parte de seu tempo na igreja. Os raros momentos em que nos reuníamos resumia-se aos horários reservados às refeições, e mesmo assim não nos comunicávamos - sequer olhávamos pra cara um do outro. O mair diálogo que mantínhamos era:  "Me passa a manteiga?", ou então: "Onde você guardou o pote de biscoitos?"
Um dia sugeri que escolhessem um dos meus livros para lerem nos momentos de ócio. Mamãe fez cara feia; a única coisa que lia era o Livro Sagrado - nada mais. Meu padrasto alegou que estaria tão ocupado pelo trabalho que não teria disposição para nada, só  mesmo para descansar. Minha irmã foi a única que tocou no meu livro, porém nunca soube se de fato o lera.
Quando dias depois a tv voltara do conserto, foi um alegria - eu diaria até que nossa vida voltou à normalidade. Minha mãe agora ria como antes; minha irmã não reclamava tanto da vida, do quanto era tediosa; e meu padrasto retomou sua rotina normal de trabalho, voltando para casa os horários habituais. Em outras palavras, éramos novamente uma família feliz.

Boi, boi,boi...

Nos meus tempos de menino, muitas coisas me metiam medo. O escuro, por exemplo. Só de pensar nele, já ficava todo arrepiado.
Quanto a isso, nada de anormal. Toda criança tem medo de escuro, assim como  de minhocas, aranhas e baratas (até os adultos têm medo dessas coisas!). O que definitivamente fugia do normal era o pavor que eu tinha de bois. Toda vez que encontrava algum solto na rua,  corria para me esconder debaixo da cama, ficando lá o resto do dia ou até que alguém me encontrasse.
À noite, sonhava com bois. Sonhava que estava cercado por centenas deles: grandalhões, pardos, desajeitados. Me encaravam com uma expressão estúpida na cara, despreocupados com a vida. Nada faziam, além de mastigarem capim, mas eu sempre acordadava aos berros. Mamãe acudia às pressas, tentando me tranquilizar, mas só agravava a situação. Em seu colo, ouvia sua voz doce cantarolando a canção de ninar que mais me enchia de pavor:

Boi, boi, boi
Boi da cara preta... 

domingo, 6 de março de 2011

Deus nos ama ou nos odeia?

Às vezes eu me pergunto: Deus gosta mesmo da gente? Se gosta, por que inventou coisas como catapora, dor de dente e resfriado; por que não decreta feriado nacional pelo resto da vida?, assim as crianças não precisariam mais irem à escola e sorririam mais, sorririam sempre: adeus, aulas de matemática, adeus carteiras duras que fazem o bumbum doer, adeus! Só então os livros chatos (aqueles com mais de quinhentas páginas) sumiriam da face da terra; virariam  relíquia de museu ou peso para tapete ou ainda trava para portas. Qualquer livro não possuindo o mínimo de oito figuras coloridas em cada página  seria banido das bibliotecas e das livrarias, queimado em praça pública como antigamente. Para as crianças, apenas seriam permitidas leituras de gibis ou contos de fadas. Caso algum adulto fosse pego infringindo a lei, tentando forçar uma criancinha a ler Machado de Assis, seria imediatamente obrigado a todas as noites contar historinhas para fazê-la dormir - qualquer uma que não Chapeuzinho Vermelho ou Os Três Porquinhos (todo mundo tá cansado de saber que no final de tudo a Chapeuzinho salva o dia e que os porquinhos escapam de serem devorados por um lobo metido a espertinho). Já é hora de os adultos  serem criativos e começarem a invertar as próprias histórias.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O mundo tornou-se quadrado

Se há um ano atrás você tivesse me dito que o mundo é uma grande bola flutuante, eu teria acreditado cegamente. Mas não pense que o mesmo se daria hoje - não senhor! Hoje estou convicto de que o mundo é um quadrado. Mas não é culpa dele ser assim. Um dia, talvez, ele tenha sido mesmo redondo, porém suas curvas aos poucos foram perdendo o contorno, foram sendo comprimidas até se tornarem num sólido quadrado. Pode culpar a geração de nossos dias e seus computadores e seus pararelhos celulares e suas redes sociais abarrotadas de amigos que nunca chegarão a s conhecer de fato. Pode culpar a mídia dizendo o tempo todo o que é certo ou não fazer, como andar, como falar, o que comer para não acabar com aquelas gordurinhas que ninguém quer. Pode culpar as ditaduras da moda, que oprimem o modo peculiar que cada um tem de ser. Acredito que você não estará totalmente  enganado. O mundo, meu caro, tornou-se quadrado.

Domingos de pelada

Domingo, dia de sol e também de pelada. Mais uma vez os meninos se juntam no campinho para uma nova partida. Quem está de fora não entende de onde eles tiram tanta energia para correr atrás da bola de borracha cravejada de remendos. Há os vizinhos que reclamam da bagunça, mas nenhum é tão temido quanto seu Agenor. Homem careca e de cara azeda, já deixou bem claro que detesta os dias ensolarados  cheios de alegria e de crianças nas ruas. Por ele, todos os dias seriam dias de temporal e mesmo no interior do Ceará cairia uma nevasca, só  para não ter de aturar os domingos de pelada.
Correm boatos de que nem sempre seu Agenor foi essa criatura amarga e temida. Houve época em que até cedia seu terreiro para as partidas. Mas depois que seu único filho saiu de casa para brincar  com a molecada e nunca mais voltou, ele se tornara o que então conhecemos. A notícia de que o menino havia sido atropelado por um bêbado quando atravessava a rua para apanhar a bola o deixara em estado de choque. Seu menino tinha apenas nove anos, um anjo! Como Deus permitia que aquele tipo de desgraça acontecesse aos inocentes?
A partir de então seu Agenor tornou-se inimigo declarado do futebol e passou a detestar os domingos de pelada, mas não porque era uma pessoa má. Ouvir o som dos risos da molecada se divertindo fazia com que irremediavelmente se lembrasse do filho, e o que havia acontecido era o que mais tentava esquecer.   

sábado, 19 de fevereiro de 2011

O atentado (parte II)

Havia matado um homem. Tudo o que tinha de fazer era ligar para a polícia, mas decidiu obedecer a seus impulsos. Enterrou o corpo em seu prórpio quintal e destruiu todas as provas que pudessem incriminá-lo mais tarde, quando houvesse uma investigação policial. Não foi fácil, o corpo pesava como chumbo; teve dificuldades para enrolá-lo num tapete e carregá-lo nos ombros. Enterrou-o a  dois metros abaixo do solo. Teve ímpetos de cavar um pouco mais, cavar sem parar, o suficiente para ocultar permanetemente seu crime. Porém deteve-se quando sua picareta perfurou o lençol freático, fazendo a parte inferior do buraco encharcar-se de água. Aquilo bastaria. A água ajudaria o corpo a se decompor mais rapidamente. Jogou-o ali sem nenhuma cerimônia (o homem era um completo estranho que invadira sua casa duarante a noite, numa tentativa de assalto; caso não houvesse atirado nele, era sua família que agora poderia estar morta, enterrada num buraco mais digno. Mas era provável que o delegado de polícia não fosse compreender sua atitude. "A arma do homem estava sem balas!" Claro que estava, mas como ele iria saber? Agira instintivamanete, como faria qualquer animal acuado diante de um predador.). Depois voltou ao quarto  e tratou de esconder a arma do crime (a sua arma). O chão ensaguentado ele lavou com alvejante repetidas vezes. A filha perguntou se já não bastava. Não. Era preciso esfregar, esfregar, esfregar. Pediu que a menina ajudassse. A princípio, ela recusou; não queria colocar as mão onde o morto havia caído (tinha pavor a esse tipo de coisa). Mas o pai foi incisivo, ao menos seu berro foi forte o bastante para dobrar a menina. A mãe apareceu logo em seguida, espantada com o urro animalesco; acreditou que a casa houvesse novamente sido invadida; esperou encontrar outra vez o bandido encapusado, apontando uma arma para a cabeça de sua filha e berrando ordens. Mas tudo o que encontrou, ao entrar na cena do crime, fora o marido e a menina empenhados em esfregar o chão. Se que pedissem, ela se equipou de um esfregão e tomou parte do serviço. Caso a polícia descobrisse tudo, ela tembém seria presa, como cúmpluce. Mas nada seria descoberto, nada! O corpo havia sido enterrado para sempre.
Semanas se passaram sem que a polícia fosse bater em sua porta. Nesse curto período, a pequemna família tentou gozar de uma vida normal. Tentou, mas tudo foi inútil. Vez ou outra o episódio voltava num pesadelo ou na mesa de jantar.
- Papai, você acha que aquele moço está no céu?, perguntava a menina quando tudo parecia estar esquecido.
- Não, claro que não , querida, o pai respondia, tentando ser esclarecedor. No céu não há vagas para homens maus.
- Então o senhor não vai para o céu!
O home esngasgava.
- Por que diz isso?
- O senhor matou um homem. Gente que mata não vai pro céu. Foi o que a tia da escola disse.
- E ela está certa, mas eu acredito que Deus não seria tão injusto a ponto de não abrir algumas exceções em casos particulares
.As palavras da filha tiraram-lhe o sono naquela noite. Não queria que a menina pensasse aqueles absurdos a seu respeito. Porém era tarde, tarde para voltar atrás e evitar tudo, tarde demais para se arrepender. Havia matado um homem... e ia para o inferno por causa disso.
Apenas uma coisa poderia lhe redimir; precisava da rum jeito naquilo. Levantou-se no meio da noite, decidido a resolver tudo. A mulher perguntou para onde estava indo. Disse apenas que precisava de ar, seus pensamentos não o deixavam em paz. Em nenhum momento ela suspeitou do que seu marido pretendia, em momento algum foi capaz de imaginar no que aquela inocente escapada resultaria.
De repente, um único estampido estoura no meio da noite. A mulher chora, angustiada e aflita. Seu marido está morto.
  

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O atentado (parte I)

A madrugada ia solta quando Bilu começou a latir. Havia notado o vulto de um estranho que tentou fugir , mas não conseguiu escapar à percepção do cachorro. Em seguida, os cômodos da casa se encheram de luz e um homem vestido em um roupão de dormir apareceu na vranda. Pouco depois, uma mulher e uma garotinha. O homem perguntou: "Quem está aí?"Parecia firme, mas a verdade era que estava com medo. Qualquer um estaria, se desconfiasse que sua casa estava prestes a ser saqueada.
- Para com isso, Bilu!, gritou a menina para a casinha de cachorro, mas logo depois confessou, com voz de choro:  "Pai, estou com medo!"
- Não deve ser nada, querida. Vamos entrar.
E entram, mas as luzes permaneceram acesas. O bandido desconfiou que a  essa altura o homem estivesse discando o número da polícia. Talvez fosse melhor esperar a noite seguinte.
Mas a oportunidade perfeita surgiu antes do que ele esperva. Minutos depois, a luzes voltaram a ser apagadas e a casa voltou à escuridão inicial. Estva na hora,.
Com habilidade felina, ele foi se esgueirando por entre as árvores do quintal para  escapar à visão do cachorro, que ainda assim rosnava a cada movimento seu. Tornou-se cada vez mais cauteloso, até alcançar a porta dos fundos. Entrou. Deu de cara com a cozinha. Nada de grande valor. Apanhou uma faca e ivadiu o outro cômodo, pronto para qualquerimpreviso.
A sala. Esapaçosa e cheia de coisas, como ele esperava. Sem produzir o menor ruído, foi recolhendo o que podia com as  mãos e depositando na bolsa preta que havia trazido: louça fina, molduras caras, estatuetas de porcelana... Não ficou surpreso com o luxo de tudo aquilo. Sabia a quem estava assaltano. Passara semanas planejando meticulosamente o que faria, como e quando. O único imprevisto fora o cachorro, não estva ali há uma semana. Mas isso agora já não lhe constituía nenhum risco.
Passou para o andar superior. Sabia que o ricaço guardadava dinheio num cofre secreto em algum lugar do próprio quarto. Teria que usar-se de violência, se quisesse ter sucesso, pois muito provavelmente iria enfrentar resistência ao se deparar com o dono da casa. Puxou um revólver da cintura: calibre 38, sem balas. Não queria ferir ninguém, ainda mais naquela casa. A arma era só para intimidar.
Entrou no quarto. Ele estava vazio. Procurou no banheiro contíguo: ninguém; teria estranhado menos se houvesse encontrdo apenas sua mulher. Suou frio. Haviam armado uma para ele.
Procurou manter a calma. Estava armado, não precisva ter medo. Sua arma estava descaregada, era verdade, mas só ele sabia disso. Carregado ou não, sob o cano de um revólver ninguém seia louco de se meter a besta.
Saiu do quarto e começou a andar lentamente pelo corredor que dava acesso aos outros quartos. Parou diante de uma porta e etentou a maçaneta: trancada; provavelmente um quarto de hóspedes. Seguiu tateando no meio da escuridão e encontrou mais outras duas portas; também constatou o mesmo. A quarta porta, porém, estava meio centímetro aberta. Um pequeno filete luminoso escapava dessa abertura mínima. Ele aproximou-se e espionou.
O quarto era de menina. Sobre a cama, uma garotinha  - e se pai ao lado, contando-lhe historinhas, enquanto a mãe, do outro lado, afagava-lhe os cabelos.
"... E o Lobo vociferou para os Três Porquinhos: se vocês não abrirem esta porta eu vou soprar, e soprar, e soprar..."
De epente, um estrondo. Diante de um bandido encapusado e de arma em punho, a pequena família se encolhe, como os Três Porquinhos diante do Lobo.
 - Você, levanta aí!, ordenou o bandido para o homem de roupão. Ele obedece.
 - Cadê a grana?, o bandido pergunta, apontando-lhe a arma para a cabeça.
- Não sei do que você está flando!, responde o homem do roupão, e logo recebe uma coronhada na cabeça.
A menina solta um gritinho estridente, logo sufocado pelo gesto abrupto da mãe de lhe tapar a boca.
- Eu não sei de nada!
O bandido dirige-se até a menina. Apontando a rama para sua cabeça, solta um berro que faz lembrar um gorila:
- Não me faça de idiota ou eu estouro os miolos dela! Cadê a grana?
Vendo sua filha naquela situação, a mãe perde o controle e atira-se contra o bandido. Leva uma bofetada no rosto e volta para o canto, resignada.   
- Vam'bora, playboy. O que vai ser, prefere ver tua família morta?
Trêmulo, o homem de roupão limpa o sangue que banhva sua testa e levanta-se do chão.
- Está bem, venha comigo, mas deixe que minha mulher e minha filha fiquem, sugeriu ele.
O bandido ri.
- E tua acha que eu sou otário? Tá querendo me passar a perna, é? Vam'bora todo mundo de uma vez, vam'bora!
A mulher ainda estava  se ecuperando do tapa que recebera. Não consegue se levantar a  tempo.
 - Vam'bora sua vadia!
Ela recebe outro bofetão. Esse arranca-lhe um filete de sangue do canto esquerdo da boca. Trôpega, acompanha o mrido.
No outro quarto, o homem de roupão retira um quadro da parede, revelando a porta de um cofre sobre a cabeceira da cama.
Debaixo da máscara o bandido estica os lábios,  forçando um sorriso  sarcático.
- Cês grã-fino são tão previsíveis! Ele havia assistido a vários filmes onde o ricaço escondia pequenas fortunas no interior de um cofre secreto, ocultado por um quadro sobre a cabeceira.
De costas para o bandido, o homem de  roupão abre o cofre. Demora-se algum tempo de pé, o que faz o abandido suspeitar. Quando volta-se, saca da pistola que havia retirdo do esconderijo e despeja uma salva de balas contra o peito do homem que invadira sua casa. Não pensa, apenas vai apertando o gatilho até que não haja mais nada e tudo fique em silêncio, a não ser pelo barulhino insistente da agulha martelando: tec, tec, tec. Sente alívio e prazer em ver o bandido estirdo no chão, afogado no prórpio sangue.

***

Mãe e filha assistem à cena perplexas, os olhos vidrados na arma que o marido conserva em punho. Ao dar-se conta disso, ele abandona o pesado objeto metálico sobre a cama e vai até o bandido, toma-lhe a 38 da mão e descobre o tambor vazio. Tudo o que então consegue dizer resume-se a um quase inaldível murmúrio:
- Snto Deus!...

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Museus e fantasmas

Toda vez  que penso no assunto, não há como escapar a essa relação que os museus têm com os fantasmas, talvez porque todos os museus do mundo sejam poeirentos e cheios de coisas velhas , atrativo irresistível para todos os tipos de fantasmas.
Quando eu era criança, poucas vezes fui a um museu. Meus pais não tinham dinheiro para ficar gastando com essas coisas, e os parcos recursos que angariavam por meio de árduo trabalho mal bastavam para o arroz e o feijão. Mas eu sabia como eram os museus pelo o que via na tv; filmes que tratavam do assunto era o que não faltavam.
De uma coisa eu tinha certeza: museus nunca ficavam abertos até tarde da noite, justamente por causa dos fantasmas. Para não assombrar os visitantes, as portas são fechadas antes mesmo que dê meia-niote. De meia-noite em diante, o museu é dos fantasmas.
Eles ficam zanzando a noite toda, entre estátuas e vasos antigos. As múmias egípcias saem de seus sarcófagos e passeiam como gente viva; algumas ainda conversam umas com as outras, talvez contando a fofoca do dia. O esqueleto de um tiranossauro rex corre atrás de uma pequena galinha pré-histórica, provocando grande espalhafato.
Horas depois ouve-se um apito de navio, e o velho Titanic surge no meio do museu. Jack e Rose estão na proa, abraçados, como no filme; não imaginam que seu barquinho pode afundar como se fosse feito de papel. O mesmo não se daria com o Holandês Voador, pois, como o próprio nome diz, um barco voador não afunda.
Ali está Dom Pedro, proclamando a Independência, enquanto naquele outro canto uma multidão de judeus carecas caminham melancólicamente para o holocausto. Eles sabem que vão morrer? Já estão mortos!
Antes que o dia amanheça, todo esse mundo fantasmagórico aos poucos vai-se apagando, como a neblina é espantada pelos raios de sol. O grande museu vai ficando novamente vazio e tudo volta a fazer sentido.

Caixinha de surpresas

Mal ela entrou na sala e todo mundo avançou em cima dela, puxando-lhe a manga da camisa, os cabelos; apertando-lhe as bochechas. Queriam saber o que trazia naquela caixa. Começaram a fazer suposições.
- Eu acho que é uma barra de chocolate, sugeriu um.
 - Claro que não, seu burro, disse outro, fazendo mofa. Olha só o tamainho dessa caixinha. Onde já se viu uma barra de chocolate caber aí dentro?
 - Diz o que é, então, já que você é tão sabido.
- Eu acho que é uma trufa de chocolate.
Todos ficaram com água na boca, diante da possibilidade de haver uma coisa tão gostosa dentro daquela caixinha. Mas ainda podiam caber mais coisas lá.
 - Talvez seja um caramelo.
 - Ou uma bala de açúcar.
- Ou ainda um punhado de jujubas!
Diante dessa última possibilidade, todo mundo vibrou: êêêêê!!! 
A professora pediu ordem. Resignadas, as crianças obedeceram e, uma a uma, foram sentando nas carteiras. Ficaram de cabeça baixa, certas de que ela nunca revelaria o segredo da caixinha de surpresas.
Então ela sorriu e tirou de lá de dentro uma  florzinha amarela, tão pequena quanto a cabeça de um alfinete, e a colocou num vaso sobre sua mesa de professora. 

A pergunta irrespondível

Agnaldo lia jornal esparramado na poltrona da sala, charutão cubano na boca. O filho chega fazendo estardalhaço e perturba sua paz. Quer saber para que servem os cavalos-marinhos, se a gente não pode montar neles. Agnaldo não sabe o que responder, emtão manda o menino ir perguntar à mãe; ela sabia muito mais coisas que ele.
Mas logo a mãe também se viu em apuros, não sabia o que responder ao menino. Com o jeito delicado que só as mães tem de ser, mandou que o menino deixassse aquilo e fosse brincar lá fora.
Ele foi, mas ainda com a dúvida matutando em sua caixola. Para que servem os cavalos-marinhos? Talvez essa fosse mais uma daquelas questões irrespondíveis: "Quem é Deus?", ou "De onde vieram as crianças?".

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Em Fortaleza é sempre assim

São 15h e 35min de uma tarde calourenta de quarta-feira. Em Fortaleza é sempre assim. Se o Sol não está fritando o asfalto, as chuvas estão alagando tudo, arrastando casas, detritos e gente. Hoje faz calor, diria que por volta de uns 30°C, com umidade relativa do ar quase nula. Da janela do me quarto posso ver a favela expondo seus barracões ao Sol. Nos terreiros, uma confusão de varais com roupas para secar. Crianças banham-se com mangueiras d'água. Alguém distante reclama: a água não está de graça. E não está mesmo! Ainda ontem quase tive um ataque cardíaco ao reber minha conta mensal, se não fosse demasiado jovem para esses tipos de ataques. Já procurei saber o motivo desse aumento repentino. Dizem que é para fazer melhorias no sistema de distribuição. Só esqueceram de me dizer onde estão acontecendo essas melhorias, porque inúmeras vezes meu chuveiro me deixou na mão no meio de um banho.
Em Fortaleza é sempre assim. As coisas nunca estão acontecendo de fato. Você sabe que uma estrada está sendo pavimentada ou que um hospital está sendo reformado quando alguém lhe conta, mas a verdade é que tudo não passa de boatos. O que vemos de fato são os escombros de um hospital caindo aos pedaços e buracos misteriosos que vão surgindo pelas estradas. Já me perguntei se esses buracos levam a algum outro mundo - algum Reino Encantado, talvez, onde nada disso exista. Mas não. Esses buracos são daqui mesmo.
Esta é uma cidade de aparências. Não importa se nesse exato momento famílias estejam desabrigadas, torrando ao Sol como o churrasco da miséria, ou se as chuvas do mês anterior levaram abaixo centenas de outros casebres humildes como os que vejo da minha janela. O que importa mesmo é que  a TV, os cartazes e os outdoors  estejam sempre anunciando uma  "Fortaleza bela", uma Fortaleza quimérica onde nunca viveremos.

O silêncio e as palavras

Para Carol da Silva, grande amiga, grande pessoa

Uma das coisas mais belas que já me disseram não veio de um filósofo ou de algum pensador que fez história. As palavras que tanto me tocaram o coração e que levarei comigo pelo resto da vida vieram de uma garota. Ela tinha espinhas na cara e ainda não alcançara a maioridade, mas falava como se houvesse vivido milhares de vidas. Não achava que isso fosse possível, pois na época não estava convicto da capacidade que nossa alma tem de reencarnar muitas e muitas vezes, até encontrar seu caminho. Mas hoje eu diria que, em um passado remoto, aquela garota vivera no corpo de algum sábio pensador grego. Nunca parei para reparar nisso, mas ela seria engraçada, usando roupas antigas e barbas e cabelos compridos, sem falar no fato de ser um homem. Mas na Grécia ela não teria tantaa vantagens como mulher. As mulheres, assim como as crianças e os esravos, eram banidos do exclusivo círculo da elite aristocrática. Levando isso para os dias atuais, seria como um trabalhador assalariado querendo levar sua família para um passeio num shopping center.
Nossa amizade aconteceu fácil. Bastou uma simples troca de olhares e um curto período de diálogo para que nos sentíssemos compatíveis um ao outro. Ela viva dizendo coisas como: "Se avida que a gente vive não é nem de longe a que desejávamos, devemos viver ainda assim, mas lutando para torná-la cada vez melhor." Ou ainda: "Lutar pelos nossos sonho é a batalha mais nobre da vida". Coisas desse tipo me deixavam particularmente encantado. Às vezes me achava um bobo, quando comparado a ela. Mas logo ela me fazia sentir especial, com mais palavras que só ela sabia falar. Sentia-me inútil quando todos os assuntos que tínhamos para tratar se esgotavam no decorrer de uma semana. Então ela sorria, gentil, e tocava meu ombro com mão de nuvem. A maneira como então me olhava deixava-me constrangido. Ao notar minha reação, procurava concentrar-se num outro ponto qualquer, que não fosse eu. Depois dirigia-se a mim novamente e dizia: "O silêncio não significa que não tenhamos nada a dizer um ao outro. Talvez a gente tenha tanta coisa a dizer que não precisamos falar nada."

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Num quarto escuro

Já passa da meia-noite - e eu aqui, mergulhado no tédio. Procuro algo para me distrair, em vão. As paredes que me cercam também me comprimem e me sufocam. Não sou claustrofóbico, mas tenho medo de morrer feito um rato que não encontrou saída.
Então levanto, fico girando em círculos - girando, girando, girando - até que me sinto enjoado. Entrego os pontos e finalmente me atiro à cama, mesmo insone. A escuridão me enlove maternalmente. A cegueira também é um modo de ver.
Bem ao longe os galos cantam. Eles nunca esperam o dia amanhecer de fato. Antes que os primeiros raios de sol se infiltrem pelas brechas do meu telhado, eles cantam. Talvez tenham sexto-sentido ou  talvez uma premonição das coisas que vão acontecer. Eu aqui, mergulhado no breu, jamais compreenderei os mistérios que regem o Universo.

O jornaleiro

Eu ainda não havia tomado o café da manhã quando me bateram à porta; na verdade, sequer havia levantado da cama - o que não era para menos: quem, no nome de nosso Senhor Jesus Cristo, seria tão inescrupuloso a ponto de incomodar um pacato cidadão àquela hora do dia? Na verdade,eu não fazia ideia de que horas eram;  não sou do tipo que mantém um relógio de estimação ao lado da cabeceira - mas isso não muda o fato de que era cedo, demasiado cedo para se incomodar alguém. Continuei na cama e o sujeito lá fora não insistiu.
Menos mal; assim poupava-se ele  mesmo de perder seu tempo - o tempo que é tão precioso e que jamais pode ser recuperado. Gastá-lo negligentemente é a pior tolice que um ser  humano pode cometer.
Talvez o estranho tenha se dado conta disso.Num primeiro momento, quem sabe, talvez tenha ficado chateado, mas logo ao virar as costas sorriu para o barzinho do outro  lado da rua. O que quer que tenha vindo fazer à minha porta, esqueceu-o quando a deixou para trás, junto com o jornal do dia.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

De volta à vida

Tudo começou a partir de uma coceirinha gostosa no meu pé esquerdo. Achando que fosse coisa que passaria logo, não dei tanta importância ao caso. Toquei a vida como quem tocasse carro de bois.
Devo admitir que , depois de alguns dias, estava começando agostar daquela coceirinha, afinal tinha algo a que dirigir meus pensamentos. Todas as noites, ao término de uma exaustiva jornada de trabalho, atirava-me no sofá e arrancava os sapatos para aliviar a comichão que fazia festa entre meus dedos.
Numa dessas ocasiões, porém, me vi surpreendido. A pequena vermelhidão entre meus dedos havia tomado proporções assustadoras, invadindo territórios vizinhos. Como se não bastasse, também deu a latejar. Semanas depois, sequer estava conseguindo calçar um sapato.
Fui ao médico. Ele disse, com aquele ar de sabichão que só os médicos sabem fazer, que o caso era grave, muito grave.
- Vou ter que me submeter a uma cirurgia? perguntei, já prevendo o pior.
- Não, ele respondeu assim mesmo, fria e secamente.
 -Meus dedos serão amputados?
- Também não.
- Que diabos vai me acontecer, então?
Ele me receitou uma pomada, uma reles pomada de farmácia, adquirida pela quantia exata de R$ 1,20. Fiquei uma fera. O que aquele doutorzinho de quinta estava pensando? Eu não estava sendo dramático, juro por Deus!
Fui a uma mãe de santo e ela me receitou umas mandingas infalíveis. Ora, ao menos alguém me levava à sério.
A mandinga não funcionou, e acho até que exerceu um efeito inverso, pois logo em seguida me atacou uma febre inexplicável e umas dores nas tripas. Talvez o santo não tenha ido com a minha cara, o que é naturalmente justo, pois não é de agora que ando fazendo o sinal-da-cruz toda vez que encontro um despacho numa praia.
Fui à igreja. Disseram que eu estava com o demônio e que Deus iria expulsá-lo de mim. Não sei se expulsou, ou se o demônio realmente esteve em mim; o fato é que as orações de nada adiantaram.
Voltei ao hospital, na esperança de que daquela vez ficaria dias internado. Mas que nada! O mesmo médico me receitou uns xaropes e me mandou de volta pra casa.
Dias se passaram, e nada de melhoras. Já não mais acreditava em remédios ou milagres. Havia feito um trato com a morte: que ela me levasse de uma vez, e eu não me importava com o lugar para onde iria.
Porém Deus, que é sempre misericordioso, dirigiu seu olhar a esta pobre e ignóbel criatura e enviou um de seus anjos a meu leito de morte.
- Miguel? perguntei, e a mais bela de todas as vozes respondeu: "Sim!" Senti o ar estremecer.
Tudo ficou muito claro, como se o próprio astro-Rei houvesse invadido meu quarto. Uma súbita alegria apoderou-se de meu peito, então sorri. Estava de volta à vida.