quinta-feira, 24 de março de 2011

A máquina do amor

Ainda agorinha eu estava, como sempre costumo fazer, "zapeando" por algumas páginas da Internet quando encontrei uma que me chamou a atenção justamente por apresentar a seguinte manchete:

"MAQUINA DO AMOR: novidade tecnológica ainda em fase te teste."

A matéria presseguia discorrendo das mil e uma maravilhas que aquela máquina recém-criada pelos japoneses era capaz de fazer. Basava apontá-la para algum campo de batalha onde estivesse acontecendo uma guerra entre países antes aliados, e eles novamente voltavam a ser amigos; apontasse para as regiões mais miseráveis do continente africano, que tudo - fome, doença, miséria - desapareceria como passe de mágica. O grande dilema da máquina do amor era a concorrência de mercado. As pessoas tinham preferência por outras máquinas: a máquina da dor, a máquina do medo, a máquina do egoísmo - e a mais popular de todas: a máquina da desigualdade. Segundo estimativas, ainda levaria muito tempo para que o homem se familiarizasse com a máquina do amor. Muitas instituições públicas e ongs de todas as partes do planeta até que se mostravam empenhados em ministrar cursos que capacitassem o homem a lhe dar com a máquina do amor, seus circuitos e mecanismos internos. Porém, só aos trancos e barrancos era que ele vinha assimilando aquela novidade.

Conte para mim

Conte para mim os segredos que atormentam seu jovem coração. Eu o ouvirei e o amarei até que um dia se canse de mim. Juntos passaremos noites em claro, sa preciso, e caminharemos pela praia ao amanhecer. De mãos dadas seguiremos sempre, e mesmo em caminhos separados nossos corações palpitarão um pelo outro. Meu pensamento será o seu pensamento. Com meu braço espantarei seus temores, os fantasmas que assombram o sótão da consciência. Com minha espada deceparei cabeças de dragões só para salvar você da torre sombria onde lhe aprisionaram. Em noites frias, meu corpo será o seu calor; meu abraço, um refúgio contra pesadelos. Nunca estarás sozinho quando o medo for maior que a coragem de avançar.
Conte para mim o que escondem olhos tão vagos, sorriso tão incerto estampado numa pálida face. Quero afastar para longe as assombrações que ainda te atormentam, te roubando noites de sono. Assim como um anjo da guarda, estarei sempre pronto para te proteger de vilões mil. E quando não quiseres mais nada, repousa tua cabeça em meu ombro e dorme.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Salve! Salve!

Quando eu era criança e ainda estava na escola, havia uma regra que nos fora imposta pelo diretor: diariamente, antes do término das aulas, tínhamos de nos reunir no pátio para cantar o Hino Nacional. Aí era um problema, porque toda vez que chegávamos na parte do "Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!" eu caía na gargalhada. Não entendia como se podia salvar uma pátria, nem por que ela estava pedindo socorro.
Quase sempre eu era expulso daquelas reuniões solenes, o que achava até bom. De espírito inquieto, não parava sossegado um minuto. E por mais que meus pais fossem convocados à diretoria, eu não tomava jeito - pelo contrário, até me tornava pior, como um modo de me vingar pelo o que haviam me causado.
Hoje compreendo que a pátria não estava pedindo socorro - não do modo como eu pensava. Hoje ela pede que a salvem da corrupção, do descaso das autoridades, da injustiça, da impunidade, do desemprego, da fome, da miséria.

Para não morrer de tédio

Existem muitas maneiras de se evitar o tédio. Uma delas é não pensar em monotonia. Aproveite o tempo para encher sua cabeça com coisas agradáveis - como uma lembrança feliz, por exemplo. Mas caso você não tenha uma lembrança feliz (o que é pouco provável), pense em alguma piada engraçada ou mesmo no programa de humor que você assistiu na tevê semana passada. Duvido que você não vá abrir aquele sorrisão de domingo.
Procure se manter em movimento. Sim, porque o tédio provém da estática. Seja anti-estático: pule, dance, ouça música, ande de bicicleta, faça uma caminhada, passeie com o cachorro, tome sorvete.
Por fim, encontre um bom livro para ler - nada muito cerebral, ou então você vai acabar caindo no sono antes mesmo que possa dizer "amém!".

Coisas irrevogáveis da vida

Há coisas na vida da gente que são irrevogáveis, mas  ainda assim as fazemos - seja pelo prazer que isso nos dá, seja pela total falta de controle que temos sobre nossos impulsos primitivos. Saltar de para-quedas, por exemplo; é algo definitivo. Depois que você está no alto, com os braços abertos em meio ao azul vazio do céu, não há como voltar atrás. Saltar de para-quedas não aceita arependimentos nem devoluções.
O mesmo podemos dizer quando o caso é atravessar uma rua. Você nunca poderá atravesar a mesma rua num mesmo sentido duas vezes seguidas. Cada vez será como a primeira.
Para ilustrar melhor, digamos que o par de tracejados abaixo represente as duas extremidades de uma avenida e que o X numa de suas margens seja você:

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X

A não ser que você, assim como as amebas, tivesse a capacidade de se dividir em dois, a trarefa de atravessar essa rua num mesmo sentido duas vezes seguidas seria algo impossível.
Podemos também considerar como parte irrevogável das coisas da vida o ato de embarcar num ônibus por engano. Mesmo que você tome o ônibus certo depois, isso não muda o fato de que seu percurso habitual para o trabalho, casa ou escola foi alterado; que você, mesmo sem querer, acabou fazendo um tour por algum lugar desconhecido da cidade. Em algumas ocasiões, isso até que não pode ser tão ruim, como quando uma amiga me relatou de sua aventura no interior de um ômibus que tomara achando que fosse o que costumava pegar. Ela só se deu conta de que havia cometido um engano quando o dia começou a escurecer e o ônibus não chegava ao destino desejado.
Para encerrar minha crônica, vou me arriscar afirmando que uma das coisas irrevogáveis em nossa vida é o amor. Quando você se entrega a esse sentimento, perde-se em seus muitos caminhos. Não há como desfazer os seus laços. Ele será para sempre aquele fraquejo nas pernas, um palpitar mais intenso, um pensamento meio bobo. Como diria nosso colega Luís: "é um nunca contentar-se de contente; um cuidar que ganha sem se perder." 

quinta-feira, 17 de março de 2011

Rubem, meu camarada!

Estou aqui com um volume de crônicas do Rubem Braga que tomei emprestado e não mais devolvi. Todos os dias prometo a mim mesmo que qualquer hora dessas irei devolvê-lo, porém quando me decido chegar às vias de fato, prestes a retirar o livro que há tanto tempo ficara acomodado em minha estante, me vejo tomado de nostalgia antecipada. E penso comigo :"Rubem, meu camarada! Tivemos tantos bons momentos juntos. Por que estragar tudo dessa forma? Vamos deixar de besteira! Volte para o seu cantinho e fique à vontade".

terça-feira, 15 de março de 2011

Suicídio

Não era de agora que ele vinha com aquela ideia maluca na cabeça. Porém faltava-lhe coragem para concretizá-la. Caso enfim pusesse em prática seu intento, alguém sentiria sua falta? Não tinha muita certeza quanto a isso. O mundo lhe parecia tão indiferente! Era certo que nada deixaria de funcionar só por causa de sua partida. Os automóveis prosseguiriam em seus cursos, as pessoas continuariam com o ritmo alucinado de sempre. Os dias transcorreriam e ele finalmente seria esquecido.
A ideia não lhe saía da cabeça: SUICÍDIO. Precisava decidir-se, ou então nunca tomaria nehuma atitude. A faca estava em sua mão, pronta para consumar o ato. Seu pulso batia acelerado, cheio de vida.
Certa vez lera em algum lugar: "Qualquer coisa que você puder fazer, faça-o agora. Não fique aí parado, pensando no que vai fazer. Levante-se e aja!" Sim, era o que faria. Fechou os olhos e encostou a faca no pulso. Sentiu a lâmina penetrar-lhe a carne, e em seguida um mar de sangue. A dor durou pouco tempo. Logo não sentia mais nada.

Mensagem alienígena

Já me disseram que o mundo acabaria antes que eu visse meus netos. Já me disseram que o homem na Lua era uma farsa. Já me disseram até que se eu rezasse bastante e com fervor, minhas dívidas seriam perdoadas. Mas eu queria mesmo era que minhas dívidas fossem pagas.
Não digo que nunca acreditei em nenhum desses boatos; sou humano, e é natural que o homem, assim como os insetos, sejam atraídos para a luz que brilha mais forte - até que seu corpo franzino queime com o calor e desabe inerte sobre milhares de outros. Boa parte do que me disseram ainda está para acontecer.
Meu vizinho, por exemplo, disse que ainda ontem  manteve contato com alguns seres extraterrestres e obteve a seguinte mensagem: VOLTAREMOS EM BREVE, assim mesmo, em letras de forma e em português. Não posso negar que o fato me intriga, porém às vezes me pergunto se o velho não confundiu o letriro luminoso da pizzaria ao lado com a mensagem de algum homenzinho verde.

Ciranda

Sua brincadeira predileta era a ciranda. Podia-se reunir o maior número de amigas e girar, girar, girar, até ficar tonta e cair no chão. As cantigas era sempre conhecidas e repetidas várias vezes ao dia, mesmo quando não se estava em roda.
Ricardina ficava triste quando o dia era de chuva e toda a rua ficava debaixo d'água. Dias e dias passava trancafida no próprio quarto, observando o dilúvio que não dava sinal de trégua. As nuvens lá no alto pareciam irremovíveis. Queria ter superpoderes, assim espantaria com um único sopro todas elas, assim como se espanta fumaça. Não, talvez fizesse alguma coisa mais gostosa: se tivesse uma varinha mágica, transformaria tudo em algodão doce. Então comeria tudo sozinha, deixando entre as nuvens um espaço para o sol.
Olhando assim fixamente, as nuvens lhe preciam ovelhas negras. Queria poder tosqueá-las, assim elas não ficariam atrapalhando mais nada.
Porém nenhum desses poderes ela possuía. Era apenas uma criança de imaginação fértil, querendo se divertir um pouco.
E as nuvens continuavam lá no alto, pesadonas, como soldados de um grande exército. Juntando ambas s mãos, a menina começou a rezar, lembrando-se do que os fiéis faziam quando íam à igreja. Se Deus era bom e gostava das crianças, como diziam, iria atendê-la sem demora. Rezou ainda mais, com os olhinhos exageradmente apertados para demonstrar que tinha fé. Quando abriu-os, lá estava entre as nuvens uma grande lacuna transpassada por um raio de sol. Ela caiu em gargalhads, de alegria e de satisfação.  

Sorvete, esquimós e presentes de Natal

Sempre achei que as coisas boas deveriam durar para sempre - como sorvete, por exemplo. Alguém explica por que o sorvete derrete em dias quentes? Ou por que todo mundo prefere chocolate em dias frios? Eu queria morar no Alsca. Lá o sorvete nunca derrete, foi o que fiquei sabendo num site da internet, porque a temperatura está sempre abaixo de zero grau, como a geladeira da mamãe. Esquimós não tomam sorvete, ou tomam - secretamente escondidos, talvez? Me disseram que não. Qual a necessidade de tomar sorvete num lugar onde tudo o que se vê é gelo e mais gelo e mais gelo? Agora eu entendo por que em dias quentes as pessos usam roupas cada vez menores. Imagine se um dia a temperatura alcançasse oitenta graus. Todo mundo iria andar pelado! Seria a cena mais horrível de todos os tempos: homens e mulheres, criançs e adultos, adolescentes e velhas mostrando suas partes proibidas para menores de dezoito anos. Ninguém me faria andar na rua com as vergonhas de fora, não mesmo!
Coisas boas deveriam acontecer todos os dias, não só no Natal ou no ano novo. Todos os dias deveriam ser dias de ganhar presente, mas os adultos só lembram que as crianças gostam de carrinhos e de bonecas no dia do aniversário delas ou quando estão muito doentes e têm de ficar internadas em hospitais. Precisamos urgentemente consertar as pessoas, assim mesmo como se conserta alguma coisa quebrada. O primeiro passo quando queremos consertar um carro velho é abrir o capô dele e ver o que tem de ruim lá dentro, depois jogamos tudo fora. Mas aí vem a pergunta que me entristece: E se a humanidade não tiver mais conserto? "Tudo pode ser aproveitado", já disse papai. "Mesmo um pedaço de madeira velha pode servir como uma boa lenha. Um pouco de consciência poderia dar um jeito no homem que polui, que degrada, que destrói. Você não precisa fazer força para ser consciente, basta abrir os lhos e enxergar o óbvio. A receita para preservar eternamente as coisas boas é simples. Precisamos apenas cuidar melhor das coisas enquanto as possuimos."

domingo, 13 de março de 2011

Medo de escuro

O escuro era uma das coisas que ela mais temia. Porém, se perguntássemos por que tinha medo, ela responderia: "Não sei!" Às vezes sentia raiva de ser medrosa. Queria criar coragem assim mesmo como se cria cabelo. Tentou por inúmeras vezes enfrentar seu medo com determinação, mas não durava um minuto de luz apagada e logo começava a gritar.
Como se tudo ainda não bastasse, tinha seu irmão para fazer sarro. O guri ficava o tempo todo ao pé de seu ouvido, repetindo uma ladainha irritante: "Medrosa! Medrosa! Clarice é uma medrosa!" O que ela mais queria nessas horas era ter alguma coisa para quebrar na cabeça do irmão. Qualquer coisa lhe serviria como arma: um travesseiro, um ursinho de pelúcia ou um chinelo velho que encontrasse pelo caminho. Mas o irmão parecia ter uma espécie de trato com o Coisa Ruim, pois ela nunca encontrava nada que pudesse lhe servir de arma.
Mesmo depois de moça já feita, Clarice nunca superou seu medo. Ainda hoje dorme de porta aberta e não permite que ninguém apague seu abajur de cabeceira.

Dorme, criança

Chovia a cântaros. Lá fora, raios e trovões cortavam o céu, provocando ruídos aterradores. A cada ribombar glorioso ela se encolhia debaixo do lençol, como se a frágil película de algodão fosse capaz de protegê-la de alguma calamidade. Consciente de seus temores, abraçava-lhe para que se sentisse em segurança. Quando a tempestade passava e eu percebia que ela havia pegado no sono, surpreendia-me com sua voz incerta: "Fique mais um pouco, papai!" E eu ficava... até que o dia amanhecesse, até que a luz do sol houvesse dissipado seus medos por completo. Em silêncio, apreciava seu sono inquieto (seu corpo estremecia em espasmos regularmente), esperando que a noite seguinte fosse de temporal. Mas nunca era e levava tempos para voltar a ser.
Não me pedia para que contasse histórias, apenas que permanecesse do seu lado; eu era seu anjo protetor. Doía-me pensar que um dia cresceria, arranjaria um esposo, teria filhos que sentiriam sede do seu amor tanto quanto ela agora sentia do meu. Então abraçava-lhe ainda mais, como para agarrar aquele momento-instante e não deixá-lo fugir. Se me perguntava por que a estava apertando tão forte, respondia à beira de lágrimas: "Dorme, criança!"

O achado

Vou virando calmamente as páginas de um velho caderno que havia encontrado no fundo de um gaveta e encontro coisas antigas que andei escrevendo. Recordo o quanto fiquei feliz em terminar aquelas linhas, mas hoje me sinto envergonhado. Como pude escrever tantas bobagens? E pensar que um dia sonhei publicar tudo aquilo!
Acredito que hoje minha técnica de escrita tenha melhorado significativamente e que minhas ideias tenham se tornado menos ridículas. Talvez eu esteja sendo duro comigo mesmo. Talvez eu vá abrir este caderno amanhã e novamente torcer o nariz para tudo o que escrevi.

O sorridente

Havia na nossa rua um pobre coitado que vivia a perambular pelas calçadas, sempre com um sorriso estampado no rosto. Alguns diziam que era louco. Eu, no entanto, diria que ele era um privilegiado, porque a tudo recebia com aquele sorriso que não lhe abandonava, estivesse de barriga cheia ou saciado com alguma porcaria que houvesse catado do lixo.
Devo admitir que sentia enorme admiração por aquele rapaz. Enquanto centenas de outros anônimos lamentavam pelo emprego perdido ou pelos relacionamentos liquidados, ele sorria ante a sua miséria - ele, que tinha pleno direito de chorar, sorria como se tudo fosse plenamente perfeito.
Muitas vezes me peguei me perguntando quais seriam suas origens. Alguma vez tivera um lar para onde retornar no fim de um exaustivo dia de trabalho? Alguma vez tivera um emprego? A essa altura sua esposa talvez estivesse preocupada com o paradeiro do marido desaparecido. Já não sabia mais o que responder ao filho caçula quando este começava a fazer perguntas sobre o pai.
Aquele homem sorridente era uma incógnita - não só a mim, mas como a muitos outros também. Porém talvez  fosse eu o único a demonstrar algum interesse sadio por ele. Os demais transeuntes, quando o viam pedindo esmolas, sentado na pedra fria da calçada, apenas lançavam um olhar intrigado para o seu rosto sorridente e jogavam uma moedinha na lata de leite que ele erguia para o alto. Havia, é bem verdade, aqueles que passavam sem ao menos notá-lo, ou aqueles que passavam de largo, desconfidos de seu sorriso suspeito ou afetados pelo mau cheiro de suas roupas  encardidas, mas esses eram minoria. Ainda assim, era impossível simplesmente ignorá-lo e evitá-lo, pois aos que agiam dessa forma ele persseguia por um bom caminho, sacudindo sua lata com as moedinhas, até que lhe dessem a requerida esmola.
Certo dia ele aparecera na companhia de um vira-lata. Os transeuntes assustavam-se agora duas vezes: por sua aparência degradada e pelo animal que ladrava o tempo todo a troco de nada. O homem sorridente e o cachorro logo se tornaram grandes parceiros, inseparáveis. Aonde um ia, o outro acompanhava, abanando o rabo, a língua pendurada num canto da boca. Com o dinheiro das esmolas, o sorridente comprva um único sanduíche de mortadela na cantina do Jojó e o compartilhava com o cachorro. Imagino que aquela meia banda de pão sequer bastava para aplacar a fome de ambos. No entanto, mesmo com os estômagos roncando, o homem sorria e o cão jamais o abandonava.
Dias depois, uma tragédia se daria. Fora numa dessas manhãs chuvosas, comuns na região serrana de São Paulo. As ruas e as calçadas haviam alagdo. O homem sorridente procurava por seu cachorro, que tinha ido atrás de um abrigo quando aquilo tudo começara. Não o chamava pelo nome, porque nome não tinha, e mesmo se tivesse, não poderia ser ouvido no meio daquela tempestade. Então ele soltava urros animalescos para o alto, na esperança de que o cachorro o atendesse.
Horas depois, encontrou-o entalado numa boca de bueiro, o corpo encharcado já sem nenhuma vida. Tomou-o nos braços e o carregou para longe, desfilando pelas ruas enlamedas onde outrora mendigava. Todos puderam então presenciar a mais curiosa das cenas: um homem vestido em roupas esfrangalhadas sorria, porém seus olhos transbordavam de lágrimas. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

Homens... Todos sempre tão iguais!

Rendido, ele suspira profundamente e  enterra as mãos no bolso da pesada jaqueta jeans. É estranho, pois mesmo sendo um homem de quarenta anos, sua atitude o faz parecer um garotinho que é pego em flagrante no ato de um traquinagem. Nenhuma palavra lhe sai da boca a não ser aquele suspiro.
Camila não esperava que fosse diferente, afinal os homens são sempre os mesmos -  podem mudar as táticas para se conseguir uma boa trepada,  mas basta encurralá-los para descobrir  o quanto são parecidos (mais que isso, até: semelhantes). Quando finalmente são descobertos, tornam-se mudos, enfiam as mãos nos bolsos e botam na cara a melhor expressão "lamento-muito-mas-não-foi-minha-culpa".
Renato não era uma exceção. Na verdade, as exceções eram cada vez mais raras. Não existiam mais exceções como Cristo, Gandhi ou Dalai Lama - homens honestos, que certamente não seriam capazes de ferir o coração de um a mulher, fossem quais fossem as circusntâncias. Não era pedir muito querer um cara assim para o resto da vida.
Desejava ter ouvido sua mãe. Mas estava hipnotizada pelos olhos verdes de Renato, fora laçada por um poderoso feitiço no exato instante em que o encontrara pela primeira vez, numa cafeteria da  Estação da Luz. Ela se lembrava desse episódio como se fosse hoje A cafeteria estava lotada, mas ainda assim pudera disdinguí-lo das demais pessoas quando ele entrou  e sentou-se numa mesa próximo ao balcão do caixa; carregava um jornal  debaixo do braço. Uma garçonete loura e peituda aproximou-se quase no mesmo instante. Teve ciúmes da maneira como ela o recepcionara (estava dando em cima dele!) Mas o que lhe importava aquilo? Na época, Renato não era mais que um estranho e já lhe causava grandes transtornos.
Tornara-se obsessiva: conquistar Renato era sua meta. No dia em que o encontrara na estação, não se falaram de imediato. Renato, na verdade, manteve o tempo todo a cara metida em seu jornal, não dando a mínima para ela.
Nos dias que se seguiram, Camila frequentou a mesma cafeteria assíduamente, embora não fosse fã do café que ali preparavam (suspeitava até que usassem xixi como substituto para a água do café). De todos os modos tentara chamar a atenção de Renato: dirigindo-se a todo instante ao toalete feminino; bombardeando-o- com olhares sugestivos toda vez que ele  baixava o jornal. Porém tudo fora inútil. Quando finalmente decidiu ir até a mesa onde Renato tomava seu café com broas, ele olhou-a e sorriu.
- Tenho observado você esse tempo todo, disse ele. e você é uma pessoa bem estranha.
Daí por diante tudo correra às mil maravilhas. Camila viveu sonho de amor, esbaldando-se no prazer que Renato lhe proporcionava.
Parecia que finalmente havia encontrado o homem dos seus sonhos  quando descobrira um número de celular rabiscado na agenda telefônica de Renato, acompanhado de um bilhete:

"Me ligue quando quiser - Amanda"

Agora ela o indagava, inquisidora: queria saber quem era aquela tal mulher, a da letra redonda. Renato mantinha-se calado, o que quer que dissesse apenas servindo para incriminá-lo mais ainda. Queria ter coragem de confessar, afinal Camila merecia conhecer toda a verdade. Não havia apenas Amanda em sua vida; existiam outras, muitas outras. Porém manteve-se calado.
Homens... Todos sempre tão iguais!      

Tudo o que mais desejo

É um sonho meio bobo esse que eu tenho de viajar num balão, rodar o mundo nessa bolha flutuante e nunca chegar a lugar algum.
Fico imaginando a sensação de estar no alto, mergulhado na imensidão azul do céu. A paz e o siléncio reinam em todos os cantos. Talvez seja essa a morada dos anjos.
Eu queria sempre estar num lugar assim,  distante de todas as coisas aqui embaixo. Quem sabe um dia, quando a morte enfim me abraçar,, eu seja levado para um lugar assim, juntinho de um nuvem. Isso é tudo o que mais desejo, meu Deus.

Amado casebre

Para mama. papa e mana. Todo o amor do mundo pertence a vocês.


Nos meus tempos de moleque, nunca moramos em casa de luxo - para ser sincero, sequer tivemos um teto que pudéssemos chamar de nosso; estávamos sempre em peregrinação, ora morando de favor aqui, ora de inquilinato acolá - mas incertos quanto a nosso paradeiro no dia seguinte. Não obstante esse pequeno detalhe, éramos felizes (ao menos nós, as crianças, embora nunca tenha visto minha mãe reclamar das privações a que nos submetíamos). Lembro que sempre estávamos rindo, mesmo de barrigas vazias As brincadeiras serviam como que para enganar nossos estômagos. E essas eram muitas. Não faltavam árvores em que pudéssemos nos trepar, goiabas que nos pudessem escapar, estivessem de vez ou madurinhas, postadas em galhos rasteiros ou no mais inalcansável dos galhos.
Lembro também que, de todos as casas decentes e malocas onde moramos, a que eu mais gostei fora um pequeno barraco de madeira pintada a piche que nos havia sido concedido por um colega de meu padrasto. O terreno era amplo, mas eu via muito mais que isso: aquele era um reino encantado onde eu poderia fazer minhas brincadeiras (e justamente por ser encantado, não existiam vizinhos ranzinzas para estragar tudo). Gostava de construir casinhas de madeira, e ali tive toda liberdade para expandir minha criatividade. Minha irmã mais nova consumia-se em inveja das barraquinhas que eu construía, mais ainda porque nunca permitia que participasse de minhas brincadeiras. Ela então chorava, esperneava, ameaçava contar tudo para mamãe, que eu na a a estava deixando entrar em minha maloquinha - porém  sempre me mantive irredutível, não querendo meninas em minhas brincadeiras. Seu último recurso era choramingar aos pés de minha mãe, que não resistia a seus apelos e acabava prometendo lhe construir uma cabana tão maior e mais sofisticada quanto a minha. Cumprir com tais promessas, no entanto, era muito raro, de modo que eu  não precisava me preocupar com a concorrência.
Um dia, porém - e eu não sei o que deu nela para tomar essa resolução - mamãe decidiu que iria dar início à construção da prometida casinha. Logo cedo começou a recolher os pedaços de toco e de madeira velha que se espalhavam pelo quintal. De pouco em pouco, a casinha foi tomando forma e  - ai meu Deus, como ia ser grande, espaçosa, um luxo de dar inveja! Fiquei com ciúmes. Mamãe nunca havia se interessado em construir uma casinha como aquela para mim e, de repente, ali estava, construindo um palacete para minha irmã. Comparado àquilo, a cabana de que tanto me orgulhava não passava de um casebre feio e mal construído. Para entrar dentro dele era preciso agachar-se, enquanto que na casinah de minha irmã entrava-se de pé!
Certa feita eu quis participar de suas brincadeiras; já não tinha tantos ciúmes de seu novo brinquedo e até enxergava o lado positivo de ela também possuir uma casinha: agora éramos vizinhos, e como bons vizinhos, tínhamos de viver em harmonia, como bons camaradas. Porém quando me ofereci para entrar, ela bateu a porta e gritou lá de dentro:
- Aqui só brincam meninas!
Sinto falta daqueles tempos, em que tão poucas coisas me atormentavam. Para me fazer feliz, bastavam meus brinquedos, algumas goiabeiras e um fundo de quintal onde eu pudesse correr livremente com os pés descalços. Hoje existem as dívidas, os compromissos inadiáveis, o inferno de amar, meu Deu, o inferno de amar!

terça-feira, 8 de março de 2011

Olhos na distância

Há uma semana ele tinha partido e desde então não mais voltara. Com os olhos na distância, Maristela o aguardava, esperançosa. A todo custo procurava espantar para longe a ideia de que ele nunca mais voltaria, de que as ondas furiosas do mar haviam tragado para sempre o barquinho de pesca  com o qual partira. Bem que insistira para que não fosse, pois os ventos que ultimamente sopravam não pareciam muito confiáveis. Mas o marido, turrão, não lhe quisera dar ouvidos. Voltaria com um bom pescado, garantia, e daquela vez ganharia muito dinheiro, o bastante para enfim saírem daquele miserê em que se encontravam. Compraria boas roupas para ela e para as crianças, talvez até sobrasse um pouco de dinheiro para a reforma do velho barracão. Poderiam viver como pessoas decentes.
- De que vale um vida decente, se em troca disso me for tirado um marido?, ela argumentera no dia de sua partida
- Êh, mas que falta de otimismo! Vai dar tudo certo, mulher.
Não, nada iria dar certo. Ela tinha certeza de que não.
E agora uma semana se passara desde que o marido cabeça dura armara a vela de sua pequena jangada e partira singrando as  vagas revoltosas. Em seu coração,Maristela sabia o que havia acontecido, porém recusava-se acreditar.   

Louvado seja

Louvado seja o canto do galo pela madrugada adentro.
Louvada seja a goteira no meu telhado.
Louvados sejam o ovo frito e o frango assado.
Louvados sejam a meia furada e os sapatos apertados.
Louvada seja aa noite que me permite em seus braços repousar depois de um exaustivo dia de trabalho.
Louvado seja o biscoito velho no fundo do armário.
Louvado seja o salário que é pago sem descontos ou atrasos.
Louvado seja o raio de sol em dias nublados.
Louvado seja o canto dos pássaros.
Louvado também seja o sagrado rock'roll.

O terrível

Na nossa rua todo mundo estava preocupado. Desde que um vira-lata se instalara nas imediações, ninguém mais tinha sossego. O animal rosnava para qeum quer que passasse, fosse homem adulto, criança ou mesmo uma velhinha que voltava das compras de feira (não tivesse ela cuidado, era atacada traiçoieiramente pelos calcanhares). Os mais precavidos andavam sempre armados com algum porrete ou um punhado de pedras, o que só servia para atiçar a fúria do animal. Por essa e por outras,  fora apelidado de "O Terrível" - não que de fato fosse algo de impressionável: o animal era franzino e já alguns dentes na boca lhe faltavam; sua fama devia-se tão-somente a sua bravura.
A não ser por isso, ninguém dava muito crédito para O Terrível; alguns até o consideravam meio burro, pois sua cara conservava uma permanente expressão apalermada. Eu sempre achei que tudo o que O Terrível queria era só um lugar onde pudesse ficar sossegado, livre dos perigos que uma cidade grande representava; talvez por esse motivo viera buscar abrigo em nossa rua. Mas nem os animais encontram repouso na vida terrena, de modo que os moleques, vez por outra, estavam lhe atirando pedras e dando-lhe pauladas.

segunda-feira, 7 de março de 2011

O esquisito

Ao contrário dos outros meninos, Ricardinho nunca se interessava pelas coisas; ficava sempre amuado a um canto, enquanto a molecada se divertia com as mais diversas brincadeiras. Nunca sorria, pois se não tinha com o que brincar, não tinha também motivos para sorrir. O único som que se ouvira  dele até então fora o seu berreiro ao nascer.
O pai olhava o menino e quase sempre chegava à mesma conclusão: aquilo eram vermes; o menino precisava de um bom purgante. Porém nem purgante  ou qualquer outro remédio contra males de tripas davam jeito na tristeza do moleque.
A mãe, ao contrário, achava que fosse coisa da idade.
- Besteira!, o pai retrucava imediatamente. Vê se o Paulinho é assim, ou então o Gustavinho. Todos agem como crianças normais - crianças normais, Maria Helena. Nosso filho é um retardado.
Durante anos a fio Maria Helena recusou-se acreditar naquela possibilidade. Porém aquilo agora tornava-se  evidente, não só porque o marido  insistia em pensar que o filho sofresse de algum mal da cabeça, mas porque as evidências tornavam-se cada vez mais claras.
Santo Deus! E se aquilo fosse verdade? E se o marido tivesse razão? Quase sempre ele estava enganado,  mas daquela vez... Tudo apontava para um única verdade da qual ela sempre tentara se esgueirar. Mas uma hora não haveriam mais caminhos por onde escapulir, então ela teria que aceitar o fato de que, mesmo com todas as suas esquisitices, Ricardinho nunca deixaria de ser o seu menino.

Família feliz

Quando a tv lá de casa quebrou, foi um deus-nos-acuda para minha irmã. O que ela faria da vida sem suas novelas? Meu padrasto também ficou em situação desesperdadora: uma semana sem assistir aos filmes policiais de que tanto gostava  parecia o fim do mundo. Mamãe não externou sua indignação, mas eu sabia que, no fundo, a tv também lhe fazia enorme falta.
Devo admitir que nossa companheira não me fez nenhuma falta (não tenho hábito de assistir televisão; prefiro me distrair com meus livros e meus escritos - a programação água com açúcar da tevê brasileira não contribuindo muito para ganhar minha simpatia). Portanto, fui o único  que não ficou largado pelos cantos da casa, abandonado ao tédio. Minha irmã, ao contrário, trancou-se por dias no quarto. Meu padrasto procurava chegar mais tarde do trabalho e mamãe tornou-se mais religiosa, passando a maior parte de seu tempo na igreja. Os raros momentos em que nos reuníamos resumia-se aos horários reservados às refeições, e mesmo assim não nos comunicávamos - sequer olhávamos pra cara um do outro. O mair diálogo que mantínhamos era:  "Me passa a manteiga?", ou então: "Onde você guardou o pote de biscoitos?"
Um dia sugeri que escolhessem um dos meus livros para lerem nos momentos de ócio. Mamãe fez cara feia; a única coisa que lia era o Livro Sagrado - nada mais. Meu padrasto alegou que estaria tão ocupado pelo trabalho que não teria disposição para nada, só  mesmo para descansar. Minha irmã foi a única que tocou no meu livro, porém nunca soube se de fato o lera.
Quando dias depois a tv voltara do conserto, foi um alegria - eu diaria até que nossa vida voltou à normalidade. Minha mãe agora ria como antes; minha irmã não reclamava tanto da vida, do quanto era tediosa; e meu padrasto retomou sua rotina normal de trabalho, voltando para casa os horários habituais. Em outras palavras, éramos novamente uma família feliz.

Boi, boi,boi...

Nos meus tempos de menino, muitas coisas me metiam medo. O escuro, por exemplo. Só de pensar nele, já ficava todo arrepiado.
Quanto a isso, nada de anormal. Toda criança tem medo de escuro, assim como  de minhocas, aranhas e baratas (até os adultos têm medo dessas coisas!). O que definitivamente fugia do normal era o pavor que eu tinha de bois. Toda vez que encontrava algum solto na rua,  corria para me esconder debaixo da cama, ficando lá o resto do dia ou até que alguém me encontrasse.
À noite, sonhava com bois. Sonhava que estava cercado por centenas deles: grandalhões, pardos, desajeitados. Me encaravam com uma expressão estúpida na cara, despreocupados com a vida. Nada faziam, além de mastigarem capim, mas eu sempre acordadava aos berros. Mamãe acudia às pressas, tentando me tranquilizar, mas só agravava a situação. Em seu colo, ouvia sua voz doce cantarolando a canção de ninar que mais me enchia de pavor:

Boi, boi, boi
Boi da cara preta... 

domingo, 6 de março de 2011

Deus nos ama ou nos odeia?

Às vezes eu me pergunto: Deus gosta mesmo da gente? Se gosta, por que inventou coisas como catapora, dor de dente e resfriado; por que não decreta feriado nacional pelo resto da vida?, assim as crianças não precisariam mais irem à escola e sorririam mais, sorririam sempre: adeus, aulas de matemática, adeus carteiras duras que fazem o bumbum doer, adeus! Só então os livros chatos (aqueles com mais de quinhentas páginas) sumiriam da face da terra; virariam  relíquia de museu ou peso para tapete ou ainda trava para portas. Qualquer livro não possuindo o mínimo de oito figuras coloridas em cada página  seria banido das bibliotecas e das livrarias, queimado em praça pública como antigamente. Para as crianças, apenas seriam permitidas leituras de gibis ou contos de fadas. Caso algum adulto fosse pego infringindo a lei, tentando forçar uma criancinha a ler Machado de Assis, seria imediatamente obrigado a todas as noites contar historinhas para fazê-la dormir - qualquer uma que não Chapeuzinho Vermelho ou Os Três Porquinhos (todo mundo tá cansado de saber que no final de tudo a Chapeuzinho salva o dia e que os porquinhos escapam de serem devorados por um lobo metido a espertinho). Já é hora de os adultos  serem criativos e começarem a invertar as próprias histórias.